Perspicaz e instigante artigo de Wilson Roberto Ferreira publicado originalmente no Cine Gnose
Nos anos 1970, dizia-se que os publicitários eram “filhos de Goebbles”. Logicamente, um estereótipo exagerado de uma esquerda combativa dos tempos da ditadura militar brasileira. Washington Olivetto mostrou que a Publicidade não precisava de tudo isso: bastava criar bons textos dionisíacos para que, magicamente, o interesse privado mercadológico se fundisse com o interesse público num inconsciente coletivo abduzido pela prospecção das pesquisas sociopsicológicas de mercado. Para criar o fenômeno das “memórias afetivas”. Há um termo sociológico para esse fenômeno: a “refeudalização da esfera pública” (Habermas). O grande truque cognitivo em que interesses privados de anunciantes ganham uma irresistível relevância pública. A tal ponto que uma agência de publicidade acabou virando título de uma música popular de sucesso.
Os leitores mais velhos desse humilde blogueiro devem lembrar daquela espécie de melodia atonal tocada com uma flauta ou gaita pelo amolador de facas e tesouras ambulante. Andava pelas ruas com uma bicicleta que, além de lhe servir como meio de transporte, tinha em sua parte traseira um esmeril mecânico com uma pedra de amolar objetos cortantes.
Alguns deles chegavam até a consertar armações de guarda-chuva!
Essa melodia atonal era a estratégia de propaganda para avisar que esse, por assim dizer, proto-empreendedor estava passando na rua.
Além desse termo “empreendedorismo”, uma outra expressão que está muito na moda é “memória afetiva”. E esse aviso sonoro da passagem do amolador ambulante entra nessa categoria: aquele som que faz lembrar a infância e um tempo em que as ruas eram mais livres e seguras para as crianças jogarem bola.
Memória afetiva: lembranças são desencadeadas quando o indivíduo tem contato com algum cheiro, cor, gosto ou outro sentido que remete ao acontecimento associado a algum tipo de emoção ou sensação específica.
A morte do publicitário Washington Olivetto, aos 73 anos, vem rendendo textos e homenagens nas quais o que mais se encontra é a frase: “campanhas publicitárias fantásticas que ficarão para sempre na nossa memória afetiva”.
E não foram poucas: “O Primeiro Sutiã”, “O Garoto da Bombril”, a campanha da Folha com Hitler (“é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”), “O Homem de 40 Anos”, “O Casal Rodolfo e Anita do Itaú”, “Unibanco 30 Horas”, o Cachorrinho da Cofap, os meninos do DDD, o “Bra” de Bradesco etc.
Ícone da publicidade brasileira e mundial, papa-prêmios, o nome mais ilustre da publicidade brasileira, e assim por diante, foram expressões recorrentes que marcam as homenagens e obituários.
Mas vão muito além nessas celebrações. Principalmente para a grande mídia, a genialidade de Washington Olivetto teria dado uma suposta marca de brasilidade à linguagem de um mercado transnacionalizado – o mercado publicitário brasileiro que se tornou globalizado e estratégico ao capital estrangeiro, principalmente após à redemocratização, abertura econômica e a agenda neoliberal das privatizações.
Imortalizado pela exortação ao publicitário feita pelo cantor Jorge Ben Jor no verso “Alô, Alô W/Brasil” (“W/Brasil (Chama o Síndico)”), Olivetto foi elevado a um patamar para além de um profissional bem-sucedido do mercado publicitário – tornou-se no legado de contribuição à própria cultura brasileira.
Por exemplo: “Washington foi uma escola, e foi aluno do cotidiano ao compreender que a propaganda criativa vem da rua, dos hábitos da cultura popular. Sua carreira e sucesso foram guiados pela habilidade de transformar atitudes simples em ideias poderosas e inesquecíveis — disse Fernando Barros, presidente do Conselho da Propeg.
Se vivesse mais, Washington Olivetto correria o risco de ser até indicado à Academia Brasileira de Letras, tal a necessidade de dar relevância pública à publicidade ao associar a expansão do mercado publicitário com a da própria cultura popular – o que faz imaginar uma situação distópica futura em que as pessoas colecionariam playlist de jingles publicitários como fossem música pop.
O álibi da “memória afetiva” é uma bonita narrativa, sentimental, acolhedora, empática, para conciliar duas coisas antitéticas: de um lado a cultura popular, expressão pública de sonhos, anseios e memórias mnemônicas; e do outro, a estratégia retórica do “discurso dionisíaco” publicitário (persuadir pela emoção, contar uma pequena história ao leitor e envolvê-lo no enredo para abrir seu coração e torná-lo favorável ao que se anuncia) para criar a prestidigitação de apresentar um interesse privado, mercadológico e comercial como fosse interesse público.
A memória afetiva proporcionada pelo som do amolador de facas ambulante é incomparável com a suposta memória afetiva publicitária. O primeiro é fruto do improviso resultante da precariedade das posses materiais de alguém do povo. Enquanto o segundo é resultante da milionária prospecção sociopsicológica do inconsciente coletivo.
Memória afetiva e refeudalização
Onde vemos “memória afetiva” o filósofo e sociólogo alemão Jürguen Habermas via o típico fenômeno social do século XX que ele denominou como “refeudalização da esfera pública”.
Habermas define a esfera pública como um espaço de discussão e deliberação onde os cidadãos podem se reunir livremente para debater temas de interesse comum, formular opiniões e influenciar as decisões políticas. A ideia de uma esfera pública está intimamente ligada ao surgimento da democracia liberal nos séculos XVIII e XIX, quando o debate racional em torno de questões políticas, econômicas e sociais começou a emergir nos cafés, salões literários e na imprensa, afastando-se do controle exclusivo da aristocracia e do Estado.
Nessa fase, a esfera pública era considerada o lugar onde os cidadãos racionais podiam discutir as questões de interesse público com base no diálogo e na argumentação, exercendo pressão sobre o poder político.
Habermas argumenta em sua obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (“Strukturwandel der Öffentlichkeit”), publicada em 1962, que com o desenvolvimento do capitalismo avançado e o crescimento das grandes corporações e meios de comunicação de massa no século XX, a esfera pública moderna passou por um processo de “refeudalização”.
Este conceito remete à organização social feudal da Idade Média, quando as relações políticas e sociais eram controladas por elites aristocráticas e o público (ou a sociedade em geral) desempenhava um papel meramente passivo e subordinado.
A “refeudalização” ocorre quando os espaços destinados ao debate público são dominados por interesses privados, como grandes corporações e elites econômicas, que passam a controlar as estruturas de comunicação e a manipular a opinião pública em seu próprio benefício.
Na prática, isso significava que os grandes anunciantes passam a utilizar a publicidade e os meios de comunicação de massa para promover suas próprias agendas, muitas vezes de forma manipulativa. Para não só influenciar e controlar a percepção pública – mas, principalmente, de fazer o público se identificar com iniciativas privadas como fossem constitutivas do próprio interesse público.
Na prática, o que temos é uma esfera pública encenada – utilizando-se da emotividade da crônica cotidiana publicitária que abduz a espontaneidade popular, encena uma alegre unanimidade que apenas mascara o interesse mercadológico.
Esse controle da opinião pública via meios publicitários é um dos principais elementos da refeudalização, onde as elites (políticas ou econômicas) dominam o espaço público, usando a comunicação de massa para se manter no poder e reforçar suas posições.
Desse ponto de vista, Washington Olivetto foi o mago da refeudalização da esfera pública brasileira.
Esse foi o seu grande mérito, restrito à profissão de publicitário. Ou como se dizia nos anos 1970, a profissão dos “filhos de Goebbles”.
O resultado da genialidade de Washington Olivetto é essa sensação difusa de “memória afetiva” ao ver o Garoto da Bombril e a garota do Primeiro Sutiã.
Mas, como disse certa vez Charles Baudellaire, “o maior truque do Diabo foi convencer o mundo de que ele não existe”.
Da mesma forma, o grande truque de Olivetto foi transformar o interesse de anunciantes em memórias afetivas e dar a impressão de que não existe qualquer antagonismo entre interesses públicos e privados.
Elevar um publicitário para além do seu meio profissional, conferindo a ele a imagem de um gênio da cultura nacional é o sintoma de um país dominado pela agenda das privatizações… quem sabe, no futuro, teremos memórias afetivas também de comerciais de empresas como Enel ou Equatorial…