Compreender que o trabalho que as mulheres realizam é algo central na vida em sociedade e não apenas “ajuda”, “apoio” ou algo “complementar” é fundamental na construção de uma alternativa ao modelo de desenvolvimento capitalista, patriarcal y racista, expresso hoje na chamada economia verde. Esse foi um dos pontos de destaque durante a atividade “Feminismo, agroecologia e soberania alimentar: construindo um novo paradigma de sustentabilidade para a vida humana”, realizada no dia 16, em conjunto pela Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Via Campesina (VC), GT de Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), mulheres da Coordenação Andina de Organizações Indígenas (CAOI), Contag, Rede de Economia Feminista (REF), Movimento de Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE) e Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar (FBSSAN).
A partir das análises e dos testemunhos das mulheres presentes, concluiu-se que o que estão chamando de economia verde é parte de uma história de mudanças que começaram a acontecer nos anos 1950 na agricultura e que a tornaram cada vez mais artificial. Esse pacote de mudanças, iniciado com a chamada “revolução verde”, se caracteriza pela expansão da monocultura, agroquímicos e, mais recentemente, pelas chamadas biotecnologias, com a produção de sementes artificiais, transgênicas, produzidas em laboratório e que rompem as fronteiras entre as espécies. E esse processo se acelerou ainda mais nos últimos 20 anos, depois da chamada Eco-92, resultando no aumento assustador do poder das grandes corporações e das formas de dominação da natureza.
Em todo o mundo as mulheres estão resistindo contra a mercantilização e a artificialização da vida. Nancy Iza, da CAOI, contou como as mulheres indígenas do Equador lutam pelo reconhecimento do seu saber tradicional, responsável pela manutenção e ampliação de um patrimônio de biodiversidade de espécies. Ao mesmo tempo, relatou como isso está desaparecendo com o avanço dos transgênicos e de como as mulheres do campo têm que lidar com novas doenças que resultam do uso de agrotóxicos e têm que ser tratadas com medicamentos industrializados, não naturais, ampliando ainda mais a dependência.
Rejane Medeiros, da MMM do Rio Grande do Norte, falou sobre a resistência das mais de 150 famílias contra um projeto de inundação da chapada de Apodi. Nessa área, há mais de 60 anos vem se desenvolvendo uma agricultura familiar baseada na agroecologia, no princípio da soberania alimentar e na convivência com o semi-árido. “O governo diz que o projeto é para erradicar a fome. Isso significaria fortalecer as experiências que já estão construídas aqui. Mas implementar esse projeto de irrigação significa aumentar a fome!”, conta Rejane. O mesmo projeto já implementado em parte do estado do Ceará resultou no aumento da pobreza e da exploração dos trabalhadores que perderam suas terras e tiveram que buscar trabalho nos latifúndios da região ou migrar para as cidades como trabalhadores precários. A unidade dos movimentos sociais da região e o apelo à solidariedade nacional e internacional foi fundamental para parar o projeto, que ainda ameaça a região.
Se no passado as populações indígenas, quilombolas e rurais não eram nem consideradas nos projetos, hoje é comum se falar de reconhecimento do saber tradicional. Porém, no campo da empresas isso está associado com a apropriação e a privatização desse saber e o controle dos territórios. Por meio de mecanismos como Redd, por exemplo, empresas privatizam áreas de florestas e indicam a organizações não-governamentais como responsáveis dessas áreas. E as populações que aí viveram tradicionalmente, extraindo algum recurso para construir casas e pequenos barcos, essas sim responsáveis por sua preservação, passam a ser tratadas como criminosas.
Adriana Mezadri, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), destacou outra falsa solução apresentada pela economia verde que são os combustíveis supostamente limpos, criados com base na agricultura de cana de açúcar e soja: “são monocultivos que utilizam muito petróleo, muito agrotóxico e muita água, destinados ao consumo externo”. O mesmo se aplica ao cultivo de eucalipto para a produção de papel que açambarca territórios por mais de 10 anos e mata todo o solo e a biodiversidade. “Ficamos somente com a desgraça, tanto social quanto ambiental, desse modelo” que, além do mais, cria dependência do agricultor. Adriana chamou a atenção para a necessidade de pensar em que medida as mulheres do campo realmente têm poder de decisão sobre o que e como produzir, especialmente na agricultura de larga extensão. “Nosso papel é reconhecido, mas precisamos avançar mais para que ultrapasse a idéia de que é apenas ajuda”.
As mulheres não estão passivas, são cada vez mais sujeitos políticos dessa história, mobilizam-se em grupos e movimentos de mulheres, constroem redes, participam dos enfrentamentos nas áreas que sofrem esses processos, negociam juntos a governos. O impacto do capitalismo verde é vivido, mas há reação de construção e alternativa ao mesmo tempo. Em todas as falas, foi reafirmada a importância da agroecologia e da possibilidade de alimentar o mundo com outro modelo de produção e consumo alimentar, diferente do modelo dominante, que resulta em impactos sociais e ambientais.
A economia verde não compensa
Miriam Nobre, da MMM, chamou atenção para duas grandes questões em debate na conferência oficial Rio+20: a categoria de economia verde como uma resposta à crise econômica e financeira e à situação de pobreza no mundo e a criação de mecanismos e institucionalidade nas ONU correspondentes a economia verde. O principio básico da economia verde é o de compensação, a idéia de que não precisa mudar o modelo de produção e consumo, de que uma empresa pode continuar produzindo mas de que ela pode compensar isso com alteração de alguma parte ou evitando que aconteça poluição em algum outro lugar. “Esse conceito não enfrenta a questão da desigualdade no mundo, fala de combater a pobreza mas não a situação de desigualdade. Isso não funciona mesmo, nos últimos anos houve um processo de aumento de eficiência das empresas, de diminuir a utilização de recursos e de energia para a produção mas com incentivo ao aumento da produção e do consumo, e, com isso, se aumentou a utilização de energia de recursos mas ainda mais por determinados setores da população e determinados setores do mundo”, explica Miriam. Um dilema real que existe é como ampliar o acesso de muitas populações a água potável, energia e alimento de qualidade ao mesmo tempo que conceber a natureza com direitos e não instrumentalizada, a serviço da humanidade. Os operadores dos capitais – bancos, empresas, governos associados – dizem que pra isso são necessárias grandes obras, tecnologias, mas o que acontece concretamente é a diminuição desse acesso. Um exemplo é o caso da água. “Nós mulheres somos responsabilizadas por buscar água e temos que caminhar vários quilômetros para isso para ter acesso. Na ONU, a solução apresentada para lidar com esse problema foi a de comprometer empresas, privatizando o serviço de acesso de água. Isso só fez aumentar o preço e quem não tinha dinheiro teve acesso a água impedido”. A resistência e a mobilização no mundo inteiro mostra, em particular em Cochabamba, na Bolívia, mostrou que é, sim, possível reverter os processos de privatização da natureza e da vida.
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