Ir para o conteúdo

Rodrigo Vianna

Voltar a Blog
Tela cheia

A esquerda e um projeto para o Estado brasileiro

24 de Fevereiro de 2015, 20:33 , por Desconhecido - | No one following this article yet.
Visualizado 73 vezes

por Nilce Aravecchia*, especial para o Escrevinhador

O impasse político e a sensível distensão que ocorre entre sociedade e sistema político no Brasil colocam desafios para o campo intelectual. Artigo de Rodrigo Vianna neste “Escrevinhador”,  em 11 de fevereiro, tratou sobre o esgotamento do “reformismo fraco” conduzido por Lula e Dilma, sobre a crise que o PT atravessa e sobre as condições reais do partido se manter na dianteira de uma proposta democrática de esquerda.

As inquietações que exponho a seguir vão no sentido de pensar qual o papel dos intelectuais e da reflexão acadêmica nesse processo.

Na décadas de 1970, a maioria das correntes nas ciências humanas, sobretudo a sociologia, basearam seus estudos sobre o Estado a partir do comportamento econômico dos diversos setores da sociedade. As explicações estruturalistas referenciavam-se em Roland Barthes e Louis Althusser, entre outros. Grosso modo, elas viam o aparato estatal exclusivamente pela lente de sua responsabilidade na reprodução geral da dinâmica capitalista.

Assim, não havia espaço para reformismos, já que as políticas públicas também eram interpretadas como legitimação ideológica da economia capitalista. As péssimas condições de vida dos trabalhadores e dos miseráveis eram tidas como perpétuas, contradições inerentes ao sistema.

No Brasil e na América Latina a acumulação capitalista dependente só seria viável por meio da superexploração da força de trabalho, e da exclusão estrutural das camadas populares aos bens de serviço e de consumo. Por aqui, a linhagem dessa explicação pode ser encontrada nos trabalhos de Manuel Castells (Imperialismo y urbanización en América Latina, 1973), de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Dependência e Subdesenvolvimento na América Latina, 1970) e em influente ensaio de Francisco de Oliveira (Crítica à razão dualista, 1972). Com maior ou menor divergência, todos esses clássicos trabalhos explicativos acerca do subdesenvolvimento e da dependência dialogaram com os referenciais teóricos do estruturalismo francês. De certa forma, negligenciaram propositadamente a história e a cultura, e pouco problematizavam o Estado como campo de disputas.

É certo que as explicações estruturalistas faziam todo o sentido no âmbito de regimes políticos autoritários, que auxiliavam na manutenção dos níveis de superexploração por meio de controle policial violento. Foram sem dúvida fundamentais para entender elementos chave do processo de acumulação nos países ditos “periféricos”.

Paradoxalmente, no mesmo período de consolidação desse pensamento, a esquerda brasileira organizou-se institucionalmente encampando o processo de democratização. Mas na esteira desses acontecimentos o Estado em toda a sua complexidade permaneceria negligenciado pelas interpretações acadêmicas que centraram esforços para entender a organização da chamada “sociedade civil”.

Na década de 1980, as fichas mudaram da casa do marxismo ortodoxo para a organização fragmentada de movimentos populares. Ainda que Edward Thompson e seu trabalho sobre a formação da classe trabalhadora na Inglaterra tenha sido o referencial teórico fundamental desses estudos, a maioria dos trabalhos desviou de uma relação diametral com o materialismo como propunha o “marxismo culturalista” daquele autor inglês.

Muito se apostou na experiência microcoletiva da pobreza urbana como caminho para vencer a alienação imposta pelo sistema capitalista, e os objetos de pesquisa não raro se tornaram depositários das esperanças dos próprios pesquisadores. A ideia era que a escassez compartilhada no âmbito da rua, do bairro, ou da fábrica impulsionaria a formação de coletivos e de movimentos populares, cujo efeito irradiador levaria à consciência geral para dirigir esforços conjuntos rumo à transformação da realidade.

Em boa medida, as políticas públicas de sucesso, desenvolvidas em âmbito municipal pelo PT, foram devidas à premissa da participação popular que incorporava os movimentos populares.

Entretanto, paralelamente ao sucesso e à aceitação dessas políticas no nível discursivo, vimos enfraquecer a capacidade técnica da administração pública, assistimos ao desmanche de autarquias e empresas estatais que, em muitas cidades, haviam garantido o próprio sucesso do “modo petista de governar”. Generalizou-se em quase todos os campos do conhecimento à crítica ao planejamento dito “tecnocrático”.

Quando o PT chegou ao Governo Federal em 2003, era esse o caldo intelectual disponível. Do ponto de vista das políticas estruturantes, em que pese a influência de Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares, entre outros, para o núcleo duro dos intelectuais do partido, a trajetória do nacional-desenvolvimentismo era, toda ela, vinculada ao regime militar.

Pode-se dizer que a guinada desenvolvimentista-trabalhista de Lula, que se manteve com Dilma, não foi acompanhada de uma reflexão mais complexa da natureza do Estado Brasileiro em toda a sua complexidade, considerando a instauração de um processo democrático.

Se não havia lugar para o reformismo político em âmbito intelectual, seria possível que os governos petistas tivessem implementado algo muito além do “reformismo fraco” que se delineou?

Por outro lado, esse reformismo, mesmo fraco, demonstrou que entender o Estado como campo de conflitos e disputas em seu interior poderia, sim, fazer diferença. E fez, mas seus inegáveis resultados nos últimos 12 anos ainda não foram suficientes para que, do ponto de vista teórico, a herança estruturalista da década de 1970 deixasse de ser hegemônica.

Da mesma forma abundam os trabalhos acadêmicos sobre os movimentos sociais em toda sua pauta fragmentária e muitas vezes excludentes entre si. Poucos são os esforços para entender o Estado, não como simples reflexo ou máquina ideológica, mas enquanto agente específico que pode fazer diferença ao operar nas brechas do sistema capitalista.

Tendo como princípio de qualquer análise política o socialismo como um fim, a reflexão muitas vezes descuida-se de analisar a democracia como um processo, e o Estado em sua perspectiva histórica e cultural. No interior do PT, foram raríssimas as exceções, entre as quais se destacam a interpretação de André Singer sobre o lulismo, e os estudos de Marcio Pochmann acerca dos resultados das políticas públicas. Fora do partido, tem sido fundamental, não de agora, a obra de Wanderley Guilherme dos Santos.

Mas é curioso notar que, no ambiente acadêmico mais engajado politicamente, o debate sobre as possíveis novas facetas do desenvolvimentismo e, portanto, do potencial político reformista a partir do Estado, se faça ecoar mais entre economistas (que dialogam sobretudo com a herança de Celso Furtado) do que na sociologia, na ciência política ou nos estudos urbanos, onde talvez se esperasse maior apreço pela história e pela cultura. Ainda é necessário fazer jus ao trabalho de muitos historiadores que, nas últimas décadas, esforçaram-se enormemente para revisar conceitos como populismo, trabalhismo, Estado de compromisso e o próprio desenvolvimentismo.

Diante da crise do PT, que é também uma crise do campo de esquerda no país, parece fundamental que se ampliem análises como essas, tendo em vista os processos históricos e o funcionamento do Estado em toda a sua complexidade.

Não se trata de defender o abandono das categorias marxistas ou a incursão por um culturalismo vazio. A questão é: se as explicações à esquerda se mantiverem firmes no determinismo economicista, e no embate político via movimentos sociais, sobre qual base intelectual pretende-se defender a opção de ocupar, por vias institucionais, algum espaço no interior do Estado?

*Nilce Aravecchia é professora da FAU-USP

 

The post A esquerda e um projeto para o Estado brasileiro appeared first on Escrevinhador.


Fonte: http://www.revistaforum.com.br/rodrigovianna/outras-palavras/esquerda-e-um-projeto-para-o-estado-brasileiro/