O DataFolha acaba de publicar uma pesquisa que, se estiver correta, mostra o risco do momento em que vivemos: 80% dos brasileiros apóiam a medida de condução coercitiva adotada contra Lula pelo juiz da Lava-Jato, Sergio Moro.
Não importa que seja ilegal, abusiva, não importa que signifique a utilização do aparato de Estado para intimidar uma (e apenas uma) das forças políticas em disputa. Contra o PT, vale-tudo, parece dizer a Lava-Jato, com apoio da Globo, e sob os aplausos de uma maioria entorpecida pelo clima de “prende e arrebenta”.
A tradição justiceira do Brasil mostra as caras. A Constituição é jogada no lixo. Em nome de combater a corrupção (só contra o PT, porque o PSDB jamais é incomodado pela Lava-Jato), o juiz grampeia de forma ilegal a presidenta da república e escuta ilegalmente 25 advogados (numa clara afronta ao direito de defesa).
Mas Moro pode tudo. E o povo aplaude. Faltou ao PT a fibra para encarar esse debate de frente desde o início. E agora o resultado está às nossas portas.
Moro pode tudo.
Se instalar uma guilhotina em Curitiba, será aplaudido pela malta. Quem se levanta contra os abusos do juiz das camisas negras é apontado como “petralha”, “protetor de bandido”, “canalha”, “desocupado petista” (são os adjetivos que colho nas redes sociais, contra mim, nas últimas semanas).
Não importa. Quanto mais popular for Moro, mais necessário é enfrentar esse debate, para dizer: Moro deixou de ser um juiz, e virou um projeto de ditador. Moro deixou de ser um juiz, e virou um baderneiro das leis.
Ao dizer isso, não protejo o PT, nem Lula, nem Dilma – em quem votei nas últimas eleições. Não. Protejo meus adversários, protejo o futuro, protejo a democracia. Protejo meus filhos, e os filhos de meus adversários. Protejo até o Moro, ainda que não mereça.
De forma um pouco estúpida, Ciro Gomes mostrou outro dia a importância de se encarar de frente esse debate. Num vídeo que viralizou nas redes, Ciro bota pra correr um bando de desocupados que se plantou na porta do prédio onde vive.
Ciro foi duro, destemperado. Mas a razão está com ele. Talvez tenhamos que ser cada vez mais duros e destemperados, para barrar o fascismo. Com boas maneiras, não vamos derrotar esse monstro que bate às nossas portas.
É o que mostra o texto do jornalista Airton Centeno, que reproduzimos abaixo (Rodrigo Vianna)
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-Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
por Airton Centeno, no Sul21
Dita no calor da hora, a frase dura de um possesso Ciro Gomes carrega um desaforo dos mais evidentes, tradicionais e utilizados para aquele momento em que a temperatura sobe e a cusparada retórica se projeta com sua missão de destratar. Era madrugada do dia 17 e um grupelho de jovens ululantes e disfuncionais fazia barulho diante da casa do ex-governador e ex-ministro de Itamar e Lula.
-Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Mas, no caso, o mais importante não é o insulto saído da boca de um político notório pelo temperamento explosivo. Junto, traz um ensinamento sábio. Com sua validade confirmada pela história recente.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
A última vez que tal conselho deixou de ser ouvido custou 21 anos de ditadura ao Brasil.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Em 1964, no momento em que articulava o golpe contra Jango, o arquiconspirador Carlos Lacerda desconsiderou a possibilidade de reversão do que urdia. Embora sagaz, não imaginou que a usurpação de um presidente eleito, que parecia abrir-lhe o caminho para a presidência, viesse a ser, como foi, o começo do fim de suas próprias ambições presidenciais. Aos 50 anos, vivia o auge de sua carreira. Foi preso e cassado pelos novos inquilinos do poder que ajudou a implantar. Morreria em 1977 sem recuperar seus direitos políticos. Provavelmente lamentaria não ter sido admoestado — antes da vitória que se transformaria em derrocada — por um adversário mais atrevido que lhe dissesse nas fuças:
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Outro conspirador, Adhemar de Barros, também não ouviu a voz da razão. Ele e a mulher, Leonor, puxaram a edição paulista da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Também sonhava com o Planalto ao qual já fora duas vezes candidato. Seu problema era semelhante aos dos demais conjurados: falta de voto. Quando veio o golpe que pediu, Adhemar avisou: “Agora, caçaremos os comunistas por todos os lados do país”. Dono de cadeia de rádios e jornais que hoje compõem a Rede Bandeirantes, Adhemar levou uma rasteira do destino: foi caçado e cassado. A exemplo de Lacerda, morreu sem recuperar os direitos políticos.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
O mesmo aconteceu com parcela dos jornais embarcados na conspirata, caso do Correio da Manhã, o mais destemperado dos inimigos de Jango, que feneceu destroçado pela censura e a perseguição dos militares. Claro que isso não se aplica às Organizações Globo, que somente se viabilizaram como um dos maiores impérios de comunicação do mundo através de suas relações carnais com um governo de assassinos. Sem vacilar diante da mentira, quando o poder constitucional foi derrubado, O Globo proclamou na sua manchete de capa em 2 de abril de 1964: “Ressurge a democracia”. Para o Globo, a democracia golpeada era a ditadura, enquanto a ditadura que chegava era a democracia.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Quando o golpe deu seus primeiros vagidos, a Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu conselho federal, correu a embalar aquele sinistro berço de renda negra. Enalteceu “os homens responsáveis desta terra” que baniram “o mal das conjuras comuno-sindicalistas”. E, paradoxalmente, o estupro se dera “sob a égide intocável do Estado do Direito”. Sob a mesma égide e de tal estado, em 27 de agosto de 1980, uma carta-bomba na sede da Ordem matou a secretária Lyda Monteiro da Silva, de 59 anos. A carta era dirigida ao presidente do conselho federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes. Ocorre que, após apoiar a implosão da Constituição, a OAB percebera seu erro. E mudara.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
O Supremo, para vergonha dos pósteros, agiu igual. Sob o pitoresco olhar do STF, tudo estava em seu lugar: o golpe era legítimo, a democracia estava preservada e a constituição idem. Seu presidente, Álvaro Moutinho da Costa, saudou o general Castello Branco em visita à corte. Porém, após o AI-5, três ministros, os mais independentes, foram aposentados compulsoriamente.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Filha de coronel do Exército, a adolescente Sônia Moraes foi levada pelo pai e a mãe à versão carioca da marcha da família com deus pela liberdade. Era 1964 e os Moraes festejavam a queda do governo constitucional. O tempo passou, o regime mostrou seus dentes e Sônia desapareceu. Engajara-se na luta armada contra a ditadura. Presa, teve os seios arrancados e foi chacinada até a morte. Desesperado, o pai procuraria durante anos pela filha. Um dia recebeu um presente sem sentido, enviado pelo seu desafeto, o general Adyr Fiúza de Castro, comandante do DOI-Codi, no Rio. Era um cassetete da Polícia do Exército. Descobriria depois que aquilo representava uma advertência e um escárnio. Com aquele cassetete sua filha, Sônia Maria de Moraes Angel Jones, fora estuprada antes de morrer em suplicio.
– Eu estou protegendo você, seu filho da puta!
Talvez da explosão de Ciro fique mais o destempero do que o aviso. Mas é este que conta e tudo resume. Não é o mandato de Dilma que está em jogo. Quando a comandante suprema das forças armadas é grampeada, o recado é sucinto: ninguém está livre, hoje foi ela, amanhã serão vocês. Por isso, a violência ilegal, absurda e flagrante que se abate sobre a atual e o ex-presidente é apenas uma fachada. Atrás dela vem o estado de exceção.
Quando diz ao aprendiz de fascista “Eu estou protegendo você, seu filho da puta!”, Ciro expressa o que acontece após a ruptura do Estado Democrático de Direito quando até o guarda da esquina sente-se investido de superpoderes.
Como imensos contingentes da militância golpista limitam seu vocabulário a meia dúzia de chavões e não sabem bem o que estão fazendo ali e a História mostra que o que está acontecendo é somente um revival dos tempos de 1954 e de 1964, e tem muito a lhes ensinar, talvez a melhor resposta ao rancor não seja a de Ciro mas a do ministro Jaques Wagner.
Aborrecido num restaurante com o glossário golpista de um cidadão que o importunava, reagiu de maneira sintética: “Vá estudar!” Estudo é uma arma de exterminar fascistas. E ainda poderemos dizer a quem seguir a sugestão: “Estamos protegendo você”.
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