À esquerda, multidão acompanha cortejo do corpo de Getúlio Vargas;
à direita, operação do golpe de 1964 em 1º de abril
Por Renato Janine Ribeiro, no Valor
Assistimos agora a uma movimentação oposicionista pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Alguns até comparam seu caso ao de Fernando Collor de Mello, o único presidente brasileiro que foi afastado do poder por esse remédio heroico. Mas recomendo, a quem pensa assim, que lembre outra comparação possível – outro presidente, que também perdeu o cargo, também sendo substituído pelo seu vice, só que com resultados totalmente diferentes: Getúlio Vargas.
Collor não representava nada, nenhum interesse consolidado, fosse econômico, classista ou religioso. Foi um homem de grande virtù – no sentido maquiaveliano – que viu um vazio de poder e correu a ocupá-lo. Percebeu que a direita tradicional não tinha lugar, que o centro peemedebista estava esvaziado pela inflação e que a esquerda, com os nomes de Lula e Brizola, metia medo demais no campo conservador.
No meio desse vácuo de poder, que a sorte (ou a fortuna, para usarmos outro termo de Maquiavel) lhe ofereceu, ele soube dominar a bola e marcar gol. Essa, a virtù segundo Maquiavel: nada tem a ver com a moral, mas tudo com a capacidade de um líder inteligente examinar a conjuntura e agir com vistas à vitória.
Mas sua vitória se esgotou na eleição. O plano econômico que teve seu nome, e que pretendia acabar com a inflação, logo fracassou. Ele perdeu o apoio político. Assim, quando o Brasil chegou ao fundo do poço, denúncias bem feitas e bem utilizadas politicamente permitiram que fosse afastado do cargo sem drama.
O segundo semestre de 1992 – dividido em três atos: o povo na rua contra ele, a Câmara aceitando a denúncia e afastando-o do cargo, o Senado condenando-o – não foi nenhuma tragédia. O País respirou. Sentiu-se adulto, maduro. E logo voltou a se preocupar por conta da alta inflação, que Collor recebera e deixara de legado. Hoje, Collor é pouco mais do que um nome.
Getúlio é uma história inteiramente diferente. Em agosto de 1954, após o atentado que matou o major Vaz e se originara, sem que o presidente o soubesse, em sua própria guarda pessoal, ele foi rapidamente constituído como o grande vilão nacional.
A imprensa conservadora e as Forças Armadas exigiam sua saída. A decisão de se matar mudou totalmente o quadro político. Getúlio, vilão na madrugada de 24 de agosto, ao meio-dia era o grande mártir da nacionalidade. Notem que eu disse mártir, que é mais que herói.
Alguém pode ser herói por sua valentia, não importando a causa por que se bate. Nas guerras, ocorre de um exército homenagear os inimigos que se bateram com coragem, os inimigos heroicos. Mártir, não. Para alguém se tornar mártir, não basta expor ou sacrificar a vida. É preciso que ele dê a vida pela causa verdadeira, justa, boa.
Suicidar-se podia ser um ato apenas heroico, caso Getúlio com isso mostrasse somente que valorizava mais seus ideais do que a própria vida. Tornou-se martírio porque o povo aplaudiu não só a forma mas também o conteúdo, não só o ato heroico mas o ideal que ele sustentava.
Em palavras mais prosaicas, em seus últimos tempos no poder, nem Getúlio nem Collor tinham apoio da mídia ou da opinião pública. Mas havia uma maioria getulista pobre, excluída socialmente, sem voz na mídia, mais silenciada do que silenciosa. Foi essa maioria que despertou com o suicídio. Já do lado de Collor, não havia ninguém. Os pobres não apoiavam o direitista que piorou suas condições de vida. As classes médias estavam indignadas com a inflação e a corrupção. Collor estava sozinho. Getúlio, não.
Nunca saberemos como ficariam as coisas, se Getúlio não optasse pelo gesto extremo. Muitos pensam que seu suicídio retardou dez anos o golpe da direita (uma vez achei um recorte amarelado de revista em que Flores da Cunha, ex-amigo seu, então deputado pela direitista UDN, dizia: o golpe virá em cinco ou dez anos; sorte que não estarei vivo quando vier). Mas pode ser que a massa tolerasse um governo de direita, no lugar de Getúlio – não fosse o seu suicídio, que tornou a questão literalmente um caso de vida ou morte.
A situação atual lembra mais Getúlio – claro que sem o fantasma do suicídio – do que o impeachment de Collor. Dilma pode estar desprestigiada, mas continua representando uma fração importante da sociedade brasileira. Ela não se compara a Getúlio, mas o PT sim. Hoje Dilma teria menos votos do que em outubro, mas isso não quer dizer muita coisa. Se Aécio tivesse sido eleito, ele também teria perdido votos. Medidas duras, como as que prometeu, custam caro em termos de popularidade. A aposta de todo governante é arrochar no começo, para colher os benefícios perto das eleições.
Deixemos de lado a comparação preguiçosa com Collor. Ele foi fogo de palha, amor de verão. Bem antes do impeachment, já estava politicamente esvaziado. Somente se sustentava na caneta de nomear e demitir.
Já Dilma, em que pesem seus erros, sua má comunicação, possivelmente um estresse pessoal, continua representando forças políticas significativas. O fato de seus eleitores terem menos voz do que seus opositores não deve nos enganar. Eles existem, mesmo que calados. Uma eventual tentativa de impeachment não será fácil de vender à sociedade. Pode convir a quem votou contra ela, mas mesmo os sem voz na mídia estão mais presentes na vida social e política do que sessenta anos atrás.
Vale a pena todos baixarem a bola. Melhor a oposição construir alternativas do que insistir num impeachment que pode atear fogo ao País, levando a protestos na rua e a uma repressão talvez sangrenta. Enquanto isso, melhor o governo trabalhar e dialogar com a sociedade, como prometeu, mas não está cumprindo.
The post Renato Janine Ribeiro: Impeachment vai atear fogo ao País, com protestos e repressão appeared first on Escrevinhador.