Surrupiado d’O Ornitorrinco e do Com Texto Livre
Em sua festa anual, os deuses conversam preocupados sobre seu futuro Ahura Mazda, o deus do zoroastrismo, cochichava no ouvido de Deus (ou Javé, ou Alá, dependendo de sua preferência): “O ateísmo está crescendo. Até no Brasil. Na década de 1960, os sem-religião representavam 0,5% da população. Hoje chegam a 7,8%”.
Era a festa anual dos deuses, que este ano aconteceu em Asgard, onde o arco-íris é ponte.
Odin, o anfitrião, desfilava com todo seu garbo, usando tapa-olho na vista direita e piscando para os amigos com o olho esquerdo. Já seu filho Thor, por conta do filme Os Vingadores, distribuía autógrafos aos outros convidados.
Num canto, Xangô, Zeus e Tupã comparavam seus raios para ver quem tinha o maior. Noutro, Ganesha, com sua cabeça de elefante, conversava com Rá, com sua cabeça de falcão. Na varanda, Ceci e Diana falavam sobre a Lua, enquanto Quetzacoatl tomava um chocolate.
No jardim, Itzamna, o deus maia, trocava ideias sobre sacrifícios humanos com Viracocha, o deus inca. E Ahura Mazda, o deus do zoroastrismo, cochichava no ouvido de Deus (ou Javé, ou Alá, dependendo de sua preferência):
- Sabe?, sem mim você não seria nada. Antes era uma tremenda bagunça.
- É verdade, mas eu fui muito mais longe. Enquanto você ficou ali pela Pérsia, eu me espalhei pelo mundo.
- Ok, mas não esqueça que graças a mim é que começaram a pensar num deus único. E num paraíso, no juízo final e num messias.
- Pode ser. Mas eu é que entendo de mercado. Tenho o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o espiritismo. Dividi para conquistar.
- Não se gabe muito. O ateísmo está crescendo. Até no Brasil. Lembra daquele país?
- Claro. Diziam que eu era de lá.
- Pois é, no Brasil o time dos sem-religião vem aumentando muito. Mais que o grupo dos evangélicos.
- Mesmo sem aquelas músicas ruins e as ex-atrizes pornôs?
- Mesmo. Na década de 1960, os sem-religião representavam 0,5% da população. Em 2003 este grupo já havia alcançado 5,1% e, em 2009, 6,1%. E agora chegaram a 7,8%.
- Se os brasileiros continuarem assim…
- Podem ficar como os nórdicos. Você sabia que 72% da população da Noruega é de ateus ou agnósticos? Na Dinamarca é pior: 80%. E na Suécia, um horror: 85%!
- Os números são altos, mas as populações destes países são pequenas.
- Pois na China só cerca de 20% das pessoas crê num deus. Quando eles dominarem o mundo de vez…
- Isso me dá um pouco de medo. Eu me dei bem com o império romano, não me saí mal com o inglês e me mantive por cima com o norte-americano. Mas com o império chinês…, não sei, não…
Com certo ar sádico, Mazda começa a cantar, apontando os indicadores para cima:
-Ai, ai, ai, ai, ai-ai-ai, tá chegando a hora… A China já vem, chegando meu bem, é hora de ir embora…
-Ir embora? Não seja radical.
-Mas é isso mesmo, meu chapa. Se não acreditam em nós, desaparecemos. Lembra de Nammu, Dagon, Anath e Molech?
-Lembro, claro.
- Pois eles desapareceram como fumaça. E também Marduk, Damona, Ésus, Dervones e Nebo; e Yau, Drunemeton, Inanna e Enlil; e Deva, Borvo, Grannos, Mogons e Sutekh, o deus do vale do Nilo.
- É mesmo…
- Mesmo os deuses desta festa estão quase transparentes. É que pouca gente crê neles. Zeus e Toth, por exemplo, são mais folclore que religião. E eu só sobrevivo por conta de uns duzentos mil adeptos. Uma mixaria. Meus dias estão contados…
A esta altura, todos os outros deuses já cercavam os dois deuses únicos. E tinham semblantes preocupados. Então todos deram as mãos e Deus (ou Javé, ou Alá, dependendo de sua preferência), para levantar o moral da turma, puxou uma oração que era assim:
“Homem nosso que estais na terra,
santificado seja o nosso Nome,
chegue a vós o nosso Reino,
e seja feita a nossa vontade
assim no céu como na Terra.
A oração de cada dia nos dai hoje,
e perdoai as nossas ofensas
assim como nós perdoamos
a quem nos tem desprezado.
Não nos deixeis cair em esquecimento
mas livrai-nos do limbo,
Amém.”
José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP, publicou 24 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti e Livro do ano em 1995), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti 2004) e, mais recentemente, O Evangelho de Barrabás. É colunista de futebol na Folha de S.Paulo desde 1998. Escreveu também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Como fazer um filme de amor. É roteirista de cinema e tevê, onde por oito anos escreveu o Retrato Falado.
No Carta Maior
0sem comentários ainda
Por favor digite as duas palavras abaixo