Por Pedro Estevam Serrano, na CartaCapital
Duas meninas, uma de 11 anos outra de 14, foram baleadas por um policial militar na Zona Sul da Capital Paulista.
O mais estarrecedor neste tipo de violência é que o que deveria ser trágico é cotidiano. Indubitavelmente aí reside uma das maiores patologias sociais de nossa época.
Evidentemente houve um grave erro operacional dos agentes policiais envolvidos, que gerou consequência quase irreparável. O Estado deverá responder pelos danos ocasionados às vitimas e o agente envolvido deverá ser responsabilizado administrativa, civil e criminalmente na forma da lei.
Mas por outro lado não há que se demonizar o agente policial envolvido. De origem certamente humilde, mal treinado e com péssima remuneração, ainda mais tendo-se em conta que presta um serviço que implica arriscar a vida cotidianamente, não há que se despejar no individuo a culpa de todo um sistema de segurança.
Não faz sentido manter uma força de natureza militar como responsável pela segurança pública.
Produto da ditadura militar, tal sistema de segurança ostensiva é totalmente inadequado a um regime democrático de Direito.
Se por um lado é certo que a eventual substituição da Policia Militar por uma Guarda Civil não evitaria abusos por si só, também não há que se negar que a organização policial militar é concebida mais como força de ocupação territorial e controle político violento da população pobre.
Em vez de força de segurança pública submissa ao direito, a Polícia Militar, por sua própria estrutura preparada para a guerra e não para a proteção, se põe como força de exceção. Não reconhece na população pobre uma cidadania titular de direitos, mas apenas seres dotados de obrigações perante o Estado.
Como no mundo do capital globalizado já quase não há exércitos de mão de obra de reserva, a maioria da população pobre é destinada à exclusão da vida.
No dizer de Agamben , este amplo contingente miserável da população global é dotado apenas de “vida nua”, vida que não conta com a proteção de direitos políticos mínimos , nem mesmo o direito à sobrevivência. A PM matou mais por ano no Brasil que a maior parte das guerras ocorridas no globo nas últimas décadas.
Ao contrário, contudo, do que dizem setores mais conservadores da opinião publica, o que há não é uma “guerra” entre Estado e população pobre. O que há é um verdadeiro genocídio, de cunho racista, regionalista e social.
A título de se combater o banditismo, que sempre aumenta mesmo com toda a violência da PM, o que demonstra no mínimo sua ineficácia, trabalhadores pobres são vilipendiados cotidianamente em sua integridade física e moral, quando não são mortos por uma violência tão cruel quanto apoiada pela euro-descendência bem pensante das áreas nobres de São Paulo e de nossas capitais.
O fetiche do Estado de Polícia, do Estado autoritário que traz na punição o grande fator de contenção da violência, ainda seduz a maior parte de nossas classes médias, contra todos os dados racionais e históricos.
Ser humano que não se sinta minimamente amado, protegido e acolhido pelo meio ambiente familiar e social que o cerca é um ser, sempre e em qualquer circunstancia, com ampla possibilidade de se animalizar. Ele rouba e mata porque tem pouco a perder com a punição e mesmo com a morte, sua vida já é em si destituída de um sentido mínimo de dignidade material e afetiva que conforma o que chamamos de humano. só o que lhe resta é viver intensidades para se sentir vivo.
Enquanto persistirmos em tratarmos a pobreza com o cassetete e não com a mão solidária, enquanto nos focarmos na violência que a população pobre faz contra nós sem vermos a violência que fazemos cotidianamente contra ela, continuaremos reféns, pagando a conta desta violência em nossos faróis e esquinas mesmo que com tanques de guerra para nos defender.
As soluções são complexas, mas qualquer solução da segurança pública como política de Estado passa, a nosso ver, pela extinção da Policia Militar e sua transformação em Guarda Civil, ao menos pelo sentido simbólico de que o estado democrático, ao contrário das ditaduras, não carece estar em guerra com sua população mais pobre, preferindo o acolhimento e a proteção à chacina.
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