Por Celi Camargo, no Observatório da Imprensa
A morte prematura de dois adolescentes deixou um fevereiro cinza nas vidas das famílias Quevedo Barbosa e Beltran Espada. Denilson Quevedo Barbosa, de 15 anos, foi brutalmente assassinado com tiros na cabeça no dia 16 de fevereiro. Quatro dias depois, Kevin Douglas Beltran Espada, de 14 anos, foi morto após ser alvejado por um sinalizador. Dos dois casos, com certeza o de Kevin é do conhecimento da grande maioria dos brasileiros. Já do de Denilson não se pode dizer o mesmo, embora ele tenha sido morto em território brasileiro e em circunstâncias estarrecedoras.
Denilson Quevedo Barbosa era um jovem índio da tribo Guarani-Kaiowá localizada na reserva de Caarapó, no Mato Grosso do Sul. No dia 16 de fevereiro, ao sair para pescar com um colega e um irmão mais novo, ele foi surpreendido à bala quando o trio passava pela fazenda Sardinha, situada dentro da reserva. O jovem índio não teve a mesma sorte do irmão e do colega. Preso ao arame farpado de uma cerca, ele tornou-se alvo fácil. As informações dão conta de que o jovem foi torturado e depois morto com um tiro na cabeça. O corpo foi jogado na fazenda próxima e largado ao relento.
Kevin Douglas era um jovem boliviano, morador de Cochabamba. No dia 20 de fevereiro, ele viajou com familiares para assistir em Oruro, na Bolívia, à partida do time do coração, San José, contra o campeão do mundo, Corinthians, pela Libertadores da América. Para tristeza dos torcedores bolivianos, o Corinthians abriu o placar logo no início do primeiro tempo. E para aumentar ainda mais esta tristeza, um sinalizador, disparado durante a comemoração da torcida corintiana, atingiu, em cheio, o olho esquerdo de Kevin. O acidente foi fatal e a comoção tomou conta da América do Sul.
Preferências na repercussão
Duas fatalidades sem mensura. Duas vítimas que nutriam semelhanças, embora distantes mais de mil quilômetros. Denilson, índio nato, Kevin, índio por tradição herdada dos ancestrais incas. Os dois deixaram suas residências para praticar atividades comuns na cultura de cada um. A pesca sempre foi uma forma de garantir a sobrevivência entre os povos indígenas. Ir ao futebol com os familiares faz parte dos costumes dos povos latino-americanos. O que haveria de mal em um índio sair com o irmão e o colega para pescar? Quem poderia imaginar que ele depararia com um fim brutal? Quem poderia imaginar que ir a uma partida de futebol poderia representar um perigo de morte para um torcedor tão pacífico?
Se há semelhanças que podem ser citadas entre as vítimas, há também uma diferença abismal entre os dois casos. Na morte do Guarani-Kaiowá, o disparo da arma foi intencional. O fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalves confessou a autoria do crime. Já no caso de Kevin, o disparo foi culposo. Com certeza, nenhum torcedor sai de casa, viaja para outro país, com o propósito de matar uma criança. Outra diferença está no tratamento dado pelas autoridades competentes à investigação dos fatos. Doze torcedores corintianos foram presos e um menor assumiu a culpa pelo disparo acidental do sinalizador. O fazendeiro que admitiu ter matado o jovem índio prestou depoimento e foi liberado. Está livre.
Outra diferença gritante está na cobertura desses dois fatos. A mídia, principalmente a brasileira, faz questão de destacar suas preferências na escolha do que vai ou não ser uma notícia de grande repercussão. Essa questão merece um estudo à parte, e vamos a ele.
O percurso da notícia
Ao buscar nos veículos de comunicação informações que pudessem clarear melhor as circunstâncias em que o Guarani-Kaiowá Denilson Quevedo Barbosa, de 15 anos, foi morto, deparei com textos repetitivos e contendo poucos detalhes. Alguns davam conta de que o jovem índio foi torturado antes de ser morto, mas nenhuma matéria confirmou se havia marcas de hematomas no corpo do jovem. Depoimentos contidos em outras reportagens afirmavam que o jovem foi alvejado com três tiros, depois de torturado. Também não houve nenhum esclarecimento, por parte de fontes primárias, confirmando ou negando tal informação. Tudo muito superficial.
Para profissionais e pesquisadores da área da comunicação não é difícil entender as escolhas feitas pela mídia para favorecer essa ou outra notícia. Jornalistas e pesquisadores das Teorias do Jornalismo, como o português Nelson Traquina e o brasileiro Felipe Pena, teriam na ponta da língua a resposta para justificar por que a morte do boliviano Kevin Douglas teve uma repercussão maior na mídia brasileira em relação à cobertura dada à morte do índio Denilson Quevedo.
Usando os dois autores como aporte, vamos entender o percurso que a notícia faz até chegar ao leitor, telespectador ou ouvinte. Os veículos de comunicação – como empresa que são – estão sujeitos a uma política organizacional que influencia diretamente no resultado do trabalho. Como destaca Felipe Pena, na obra Teoria do Jornalismo (2008),“o jornalismo é um negócio. E como tal, busca o lucro. Por isso, a organização está fundamentalmente voltada para o balanço contábil” (p.135).
Identidade brasileira
Portanto, há de se perguntar: qual dos dois casos vende mais, ou melhor, atrai mais audiência? Um jovem índio de uma tribo que resiste a duras penas à perda de espaço e de meios de sobrevivência ou a morte de um jovem que teve como responsáveis torcedores de um dos maiores clubes de futebol do Brasil, detentor de um marketing que movimenta milhões? A dinâmica da estrutura organizacional traça, sem dúvida, os critérios de noticiabilidade. A dor das famílias que perderam os filhos não tem preço. Não se pode julgar qual dos casos é mais ou menos grave. O que se deve refletir é o papel dos meios de comunicação na cobertura cotidiana.
De acordo com dados do Conselho Indigenista Missionário, em nove anos foram assassinadas 273 lideranças da tribo Guarani-Kaiowá, o que, em média, resulta em 33 índios mortos a cada ano. Os povos indígenas já habitavam o Brasil desde quando o país foi descoberto. Portanto, eles chegaram primeiro que o futebol. Tudo bem que o futebol é uma paixão nacional, movimenta milhões e atrai uma audiência fenomenal, isso não se discute. Mas os índios são sinônimos da mais pura identidade brasileira. A dizimação desse povo não pode ser tratada com tanta banalidade. Há de se abrir um espaço na agenda midiática para dar o merecido tratamento jornalístico a casos como o do Guarani-Kaiowá Denilson Quevedo Barbosa.
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