Por Yves de La Taille, na CartaCapital
O objetivo desse artigo é refletir sobre a liberdade de expressão quando relacionada à publicidade dirigida ao público infantil.
Comecemos pelo belo conceito de liberdade perguntando-nos se tal princípio — que confere ao ser humano o direito de não ser coagido e também o dever de não coagir as demais pessoas — é absoluto ou relativo. Se for absoluto, não haverá situação na qual será correto privar alguém de alguma forma de liberdade. Se for relativo, haverá situações nas quais, por mais raras que sejam, a ausência de liberdade será legítima. Ora, é claro que o princípio da liberdade é relativo, pois depende do setor de atividade ao qual se aplica. Por exemplo, não temos a liberdade de matar nossos desafetos, nem de humilhá-los.
Qual, então, é o princípio que limita o exercício da liberdade? É o princípio da dignidade, que confere ao ser humano o direito à integridade física e psicológica e ao respeito. Mais ainda, é o próprio conceito de dignidade que embasa o de liberdade, como explicita a Declaração dos Direitos Humanos: “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade”.
Será o princípio da dignidade relativo ou absoluto? Diferentemente da liberdade, o princípio da dignidade é absoluto: com efeito, não se concebe razão pela qual seria legítimo desrespeitar alguém ou atingi-lo na sua integridade física e psíquica. Logo, para julgar a legitimidade de cada ação humana devemos analisar se ela fere, ou não, a dignidade alheia.
Isto posto, passemos a pensar a liberdade de expressão no âmbito da publicidade empregando os critérios acima expostos.
Antes de mais nada, sublinhemos que a publicidade com objetivos de vender produtos ou serviços é uma forma de expressão bem particular. Logo, a ela não se aplica a liberdade de expressão concebida como direito de exprimir opiniões ideológicas, políticas, religiosas e outras. A publicidade da qual estamos falando não veicula opiniões, mas sim discursos que visam convencer os indivíduos a comprar. O alvo da publicidade não é o ‘bem’ do consumidor potencial, mas sim o benefício da empresa que produz produtos ou oferece serviços. Logo, evocar a liberdade de expressão para justificar a ausência de limites para o discurso publicitário é tomar confortável e suspeita carona num valor essencial à democracia. Se a publicidade presta algum favor, é à economia de mercado e não à democracia.
Devemos sublinhar também que a publicidade da qual estamos falando não se confunde com transmissão de informações. Logo, a ela também não se aplica o direito à informação, essencial à democracia. Por quê? Basta ver como é feita a maioria delas. É claro que, por definição, elas informam o público de que existe tal banco, tal supermercado, tal carro, tal serviço, etc. Mas frequentemente a informação para por aí: o que, de fato, se vê são formas de seduzir o potencial consumidor, não raramente totalmente estranhas ao produto veiculado. Por exemplo, numa publicidade de celular, vê-se um famoso jogador de futebol falando de sua vida, de suas paixões e de seu respeito pelo pai: qual a relação com o apetrecho tecnológico? Nenhuma. Como não se vê relação alguma entre as qualidades objetivas de um supermercado ao dizer dele que é lugar de ‘gente feliz’. Logo, regular a publicidade não é ferir o inalienável direito à informação.
Chegamos então ao centro de nosso argumento: a publicidade é essencialmente uma forma de manipulação. Cuidado! Manipulação não é necessariamente algo negativo. É uma forma de convencer ou seduzir. Mas, quais são os critérios que ajudam a distinguir entre manipulação aceitável (e que confere ao manipulador a liberdade de exercê-la) e não aceitável (que deve ser proibida)?
Ora, é o princípio da dignidade que nos oferece o critério.
O respeito pela dignidade alheia implica, como dizia Kant, que outrem seja sempre tratado como fim em si, e nunca como meio. No caso de um compositor, por exemplo, o ouvinte manipulado que se deleita com a música é, ele mesmo, beneficiado (assim como o compositor, ao obter reconhecimento e, quem sabe, dinheiro). Em relação à publicidade, qual o beneficiário dela? O indivíduo manipulado por ela ou a empresa que contratou a mensagem? Ou ambos? Como as empresas não têm vocação altruísta (como se vê com clareza nos momentos de crise), é claro que um beneficiário inconteste é a empresa. E o virtual consumidor? Ele pode ser também beneficiário, contanto que os produtos a ele apresentados sejam bons. Se não forem, ele terá sido ‘enganado’. È por essa razão que as publicidades enganosas são consideradas ilegais.
Mas logo surge uma nova questão: quais os critérios que o virtual consumidor submetido à manipulação da publicidade possui para julgar se ele será, ou não, beneficiário? Ele certamente se valerá de suas experiências anteriores, empregará informações variadas que possui, e se valerá de sua capacidade intelectual de discernimento. Ou seja, toda publicidade, para exigir a liberdade de sua divulgação, deve deixar essa ‘chance’ ao indivíduo que a vê, ouve ou a ela assiste.
Terá o público infantil essa chance? Têm as crianças reais experiências? Não. Possuem elas informações o bastante? Não. São elas capazes de discernimento intelectual? Não. Logo, há o risco (digo bem o risco) de publicidades a elas dirigidas não respeitarem a sua dignidade no sentido de as manipularem sem que em nada se beneficiem desta manipulação.
É com essa questão que muitas pessoas se preocupam e não veem com bons olhos a publicidade dirigida ao público infantil. Sabem que a dignidade embasa a liberdade, e não o contrário.
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