Por Eric Nepomuceno, na Carta Maior
No meio da tarde da sexta feira, 22 de março, a Suprema Corte de Justiça do Uruguai conseguiu uma façanha surpreendente e nem um pouco louvável. Por quatro votos a um, declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei aprovada pelo Congresso em 2011 e que terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado durante a ditadura que durou de 1973 a 1985.
Essa lei, agora declarada inconstitucional, impedia a prescrição dos delitos cometidos por funcionários civis e militares da ditadura, por serem considerados crimes de lesa humanidade.
O falaz argumento dos senhores juízes da Suprema Corte uruguaia seria risível se não fosse indigno. Disseram eles que uma lei penal não pode ser aplicada de forma retroativa. Ou seja, vale uma lei retroativa, de 1986, tempos do então presidente Julio Sanguinetti, anistiando crimes cometidos durante a ditadura, mas não vale a outra lei que não fazia outra coisa além de acatar decisões de cortes internacionais indicando que crimes de lesa humanidade são imprescritíveis.
Trata-se de um retrocesso tão dolorido como absurdo. Em termos práticos, significa que todos os processos em andamento serão arquivados. Para isso, basta que os advogados dos réus recorram à sentença, já que eles teriam sido processados com base em uma lei inconstitucional. Além disso, abre-se a possibilidade de que os militares que já estão presos recorram da sentença que os condenou e voltem, pimpões, à liberdade.
Pelo menos dois desses presos são figuras notórias do breve período (pouco mais de um ano) em que a impunidade esteve suspensa. O coronel Tranquilino Machado foi condenado e preso em junho de 2011, como responsável direto pela morte de um estudante de veterinária em julho de 1973, logo depois do golpe militar de 27 de junho. O policial civil Ricardo Zabala foi mandado para a cadeia em março de 2012, como cúmplice do assassinato do professor e jornalista Julio Castro, figura emblemática da esquerda uruguaia.
Esses dois assassinos podem agora pedir para serem soltos, contando com o firme apoio nascido da decisão da Suprema Corte. Poderão dizer que foram condenados por uma lei inconstitucional.
Os protestos foram imediatos. Ainda na sexta-feira, a senadora pela Frente Ampla Lucia Topolanski, figura histórica da esquerda uruguaia, disse que pretende abrir um julgamento político contra os juízes da Suprema Corte. Ou seja, ela quer pedir o impeachment dos magistrados.
Lucia Topolanski, que amargou anos de prisão e torturas, além de senadora é a primeira-dama do Uruguai. Seu marido se chama Jose Mujica e é o presidente do país.
Na segunda-feira seguinte à decisão, houve uma manifestação silenciosa na Plaza Cagancha, no centro de Montevidéu, diante do prédio da Suprema Corte.
Não houve gritos, palavras de ordem, discursos. Ao longo de uma hora, tempo que durou a manifestação, houve apenas um silêncio estrondoso, intercalado por declarações de alguns manifestantes aos jornalistas. Depois dessa hora, as milhares de pessoas cantaram o hino uruguaio e foram embora.
Um dos manifestantes era o escritor Eduardo Galeano. Ao falar com os jornalistas, ele disse que aprendeu, há muitos anos, que a vida consiste em escolher entre indignos e indignados, e que sempre esteve com os indignados. ‘Acho que a Suprema Corte foi indigna, pratica a injustiça e, além disso, proíbe a memória e castiga a dignidade’, disse.
Houve, claro, os que defenderam esse gigantesco passo atrás dado pelos juízes da Suprema Corte. Um deles foi o ex presidente Julio Maria Sanguinetti, que governou o Uruguai em dois períodos – entre 1985 e 1990, e depois entre 1995 e 2000. Ao criticar os protestos e defender o retorno da impunidade, ele foi bastante coerente com sua história pessoal. Afinal, foi durante seus governos que se decretaram leis de anistia a torturadores, violadores, seqüestradores e assassinos, e se fez de tudo para impedir qualquer investigação que levasse aos que praticaram terrorismo de Estado.
E assim o Uruguai, que havia conseguido a duras penas avançar na luta pela busca da verdade, o resgate da memória e a aplicação da justiça, retrocede de maneira formidável. Se afasta da Argentina e até mesmo do Chile, e volta a se aproximar do Brasil, onde perambulam, livres, altaneiros e intocáveis, torturadores, sequestradores, violadores, assassinos.
Uma das vozes que protestaram contra a decisão da Suprema Corte foi a de Macarena Gelman. Neta do poeta argentino Juan Gelman, ela é a própria imagem do horror. Seus pais, Maria Claudia e Marcelo Gelman, foram presos na Argentina. Marcelo foi morto pouco depois. Maria Claudia, grávida, foi levada para o Uruguai. Macarena nasceu num hospital militar. Tinha menos de dois meses de vida quando foi dada de presente a um chefe de polícia. Da mãe, nunca mais se teve notícia.
Gelman, um dos mais respeitados poetas do idioma espanhol do nosso tempo, levou décadas de desespero buscando a neta.
Um dos que prometeram ajuda e depois fez de tudo para impedir que essa busca avançasse foi justamente Sanguinetti. Macarena só soube sua verdadeira identidade aos 21 anos.
Ao conhecer a decisão da Suprema Corte, que de fato assegura impunidade aos assassinos de sua mãe, ela disse que o Uruguai merece outro tipo de Justiça.
No ano passado, e cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no caso de Macarena Gelman, e se comprometeu formalmente a suprimir todos os obstáculos para esclarecer o caso.
Com sua decisão, a Suprema Corte de Justiça – que, como disse Galeano e vale a pena repetir, foi indigna e pratica a injustiça ao assegurar a impunidade – garante que esses obstáculos permanecerão, como uma nódoa pegajosa, sobre o país de José Artigas.
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