Quando Gorbachev propôs a Perestroika, em meados dos anos 80, muita gente se entusiasmou. Não se via aquilo como “o último suspiro da União Soviética”. Mas como a “renovação” do socialismo, que manteria o gigante na disputa pela hegemonia mundial. Lembro que meu irmão chegou a criar um time de futebol batizado de Perestroika. De outro lado, havia resistências. Um amigo, stalinista empedernido, comemorou quando a linha dura soviética tentou dar um golpe e chegou a prender Gorbachev durante algumas horas.
No fim das contas, nem “renovação do socialismo”, nem a volta aos tempos de Brejnev. Gorbachev debelou o golpe, ficou no poder mais alguns anos, mas a União Soviética desapareceria logo depois. Na mesma leva, vimos a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã, a “Revolução de Veludo” na República Tcheca, a vitória de Walesa contra os comunistas na Polônia. Sem falar na imagem que – na época – me marcou muito mais do que a dos pedaços de muro sendo arrancados em Berlim: o fuzilamento do casal Ceausescu na Romênia. No chão, jaziam os corpos, jazia a velha guarda do stalinismo. Jazia a história do século XX.
Relembrando de tudo agora, os mais novos talvez imaginem que tudo ocorreu ao mesmo tempo. Não foi bem assim. Entre a chegada de Gorbachev ao poder (1985) e o fuzilamento de Ceausescu, no fim de 89, transcorreram-se 4 longos anos. Mas a queda final da União Soviética só viria em 1991, com o adeus definitivo a Gorbachev. No meio do caminho, Lula perdeu para Collor em 89, o Brasil de Lazaroni foi humilhado pela Argentina de Maradona em 90, e o coringão ganhou o primeiro campeonato brasileiro com o gol de Tupãzinho.
O mundo mudou, a Guerra Fria acabou. Mas, na época, muitas vezes perdíamos a capacidade de compreender a onda histórica que se desenhava. Foram necessários quatro ou cinco anos de distanciamento, para entender a exata dimensão do furacão que passara pela Rússia e o leste da Europa.
Na semana que passou, Cuba assumiu a coordenação da CELAC (Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos), durante reunião do bloco ocorrida no Chile. O fato mereceu pouco destaque na nossa velha imprensa – talvez deprimida por ter sido, ela mesmo, a velha mídia, derrotada por esse proceso que assistimos na América Latina.
A CELAC é uma espécie de OEA, mas sem Estados Unidos e Canadá. E com a presença de Cuba. É o atestado de que a hegemonia da potência do norte está ruindo.
Em nosso Continente, o processo é até mais longo do que o corrido no Leste europeu. E talvez menos claro. É uma batalha ainda em andamento. Iniciou-se em 98, com a primeira vitória de Chávez. E da mesma forma que ocorreu com a queda do Bloco Socialista, houve idas e vindas. Chávez podia ter sido derrubado definitivamente em 2002. Não foi. Graças ao povo que desceu dos morros de Caracas e exigiu sua volta.
A permanência de Chávez deu força para Morales ganhar na Bolívia, enquanto no Brasil Lula vencia eleições (2002 e 2006) e debelava a crise de 2005. O novo bloco à esquerda ajudou Kirchner a enfrentar os credores e reerguer a Argentina pós-Corralito. E serviu de modelo para Correa no Equador. Ainda vieram Tabaré e Mujica no Uruguai, Lugo no Paraguai, Humala no Peru…
Idas e vindas… Lugo caiu, a direita ganhou no Chile. Mas a virada histórica parece inquestionável.
E se Lula tivesse aceitado as pressões da direita brasileira durante a crise da Petrobrás com a Bolívia? A integração sul-americana talvez não tivesse andado. Mas Lula negociou, Morales e a Bolívia ficaram mais fortes, e a América do Sul manteve-se unida.
A História se constrói na tessitura de fatos miúdos e de fatos maiúsculos… Um exemplo? E se Aldo Rebelo tivesse perdido a eleição para presidência da Câmara em 2005 (ganhou por vinte votos do tucano Thomaz Nonô), no momento em que o governo Lula parecia destroçado pela crise do Mensalão? Se a oposição comandasse o Parlamento, talvez ali tivesse a chance de avançar num processo de impeachment, ou de desgaste definitivo de Lula. A vitória de Aldo hoje é um fato miúdo. Mas ali se travou uma batalha definitiva para a consolidação do projeto lulista.
Daqui a 20 ou 30 anos, talvez não lembremos de todos esses detalhes. Mas, ao olhar em bloco para a América Latina, na entrada do século XXI, teremos que reparar em dois feitos impressionantes (consequência das pequenas batalhas ganhas no dia-a-dia):
- a derrota da Alca em Mar del Plata, em 2005, com o posterior fortalecimento da UNASUL (que reúne todas as nações da América do Sul;
- a construção da CELAC.
Não é pouca coisa o que acontece no Continente. O que falta, talvez, seja capacidade teórica para entender o que se passa. Valter Pomar, dirigente petista que é também o secretário executivo do Foro de São Paulo (entidade que reúne os partidos de esquerda na América Latina), escreveu sobre isso nos últimos dias. O artigo dele, que você pode ler aqui, traz uma reflexão interessante: “No imaginário de grande parte da esquerda latinoamericana Che ainda suplanta Allende, apesar de que estamos todos envolvidos hoje numa experiência que tem mais a aprender com Allende do que com Che.”
A esquerda vai desenhando uma nova história na América Latina. Aos trancos e barrancos, sem muita formulação teórica. Só em duas ou três décadas, entenderemos a dimensão dessa virada histórica. Até para saber se ela de fato se consolidou. E aí veremos tudo em “bloco”, perdendo talvez a capacidade de entender que essa história se constrói também na miudeza, nos pequenos combates que, se perdidos, podem significar recuos definitivos.
0sem comentários ainda
Por favor digite as duas palavras abaixo