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Blog do Arretadinho

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3 de Abril de 2011, 21:00 , por Desconhecido - | No one following this article yet.
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O antipetismo passa

30 de Maio de 2020, 12:10, por .

Gilberto Dimenstein morreu sem ter tido tempo de se livrar da imundície antipetista na qual chafurdou por razões inconfessáveis. 

Gilberto Dimenstein morreu aos 63 anos, no mesmo lugar biográfico em que hoje se encontram o Lobão e a Nana Caymmi. 

A morte de Gilberto Dimenstein nesse preciso lugar me faz pensar nas injunções nietzscheanas e foucaultianas: é preciso conceber a própria vida como uma obra de arte: nela nada deve haver que seja aleatório, fortuito, oportunístico, menor... 

(Millor Fernandes morreu na Veja, vendendo seu talento no lucrativo mercado antipetista da época. Hoje ninguém lembra dele) 

(Aldir Blanc, ao contrário, morreu como herói) 

É praticamente impossível não se deixar levar, neste ou naquele momento, pela abjeta ordem do dia. Mas a morte pode vir e te levar-flagrar no exato momento em que você está em franco compromisso com o poder de plantão, o poder passageiro... 

O antipetismo passa. O antissemitismo passou. A chance do Dimenstein nunca mais vai passar.

Rodrigo Lucheta



Depressão não é frescura

28 de Maio de 2020, 19:59, por .


Por Joaquim Dantas

Depressão não é frescura, é muito mais sério do que as pessoas imaginam, cuidem de quem está perto de vocês e está passando por isso, principalmente por causa do distanciamento social. Não se trata de existirem pessoas fortes ou fracas, trata-se de uma doença que, quem está acometido, não consegue superar sozinho, precisa de ajuda.

Em um primeiro momento eu não queria me expor publicamente, entretanto, pensando nas milhares de pessoas que estão acometidas desse mal e estão lutando sozinhas, eu apelo à você que esteja disposta ou disposto a estender sua mão amiga a quem está próximo, porque quem tem depressão não consegue superar sozinho. Eu sou um privilegiado porque tenho dois anjos da guarda: Meu filho e minha filha, que não medem esforços para me amparar, ajudando-me a superar este momento tão difícil que estou passando.

Este relato não é para falar de mim, é para falar de você, que pode estender a mão, ao menos em um gesto de carinho, à quem se sente só e está acometido deste mal; SOMOS MAIS FORTES QUANDO ESTAMOS JUNTOS!
Paz e bem



Essa história começa com uma flor.

28 de Maio de 2020, 19:47, por .

Essa história começa com uma flor.

Há seis mil anos os sumérios a chamavam de planta da alegria.

Na Mesopotâmia, ela era utilizada para sanar doenças como insônia e constipação intestinal. Assírios e babilônios extraiam o suco dos seus frutos para produzir remédios. Logo a sua fama alcançou o mundo.

Consta que Deméter, a deusa da agricultura na Mitologia Grega, conhecia suas propriedades tão bem que, desesperada com o estupro de sua filha Perséfone, ingeriu suas substâncias para dormir e, assim, esquecer seu sofrimento.

Egípcios, indianos, persas, árabes e romanos fizeram uso generalizado de sua natureza, mencionada nos textos médicos mais importantes do mundo antigo, incluindo o Papiro de Ebers e os escritos de Dioscórides, Hipócrates, Cláudio Galeno e Avicena.
Homero a descreveu na Odisseia.

Chama-se Papaver somniferum, mas você provavelmente a conhece como papoula.
Essa planta é a origem de um narcótico conhecido como ópio.

O principal agente narcótico do ópio é a morfina.

A curto prazo, seu efeito pode ser descrito como um desligamento do mundo exterior, acompanhado de um prazer intenso.

A longo prazo, sua dependência é perigosa.

Em abstinência, os riscos são imensos: há produção em excesso de noradrenalina, uma das monoaminas com maior influência no humor, na ansiedade, no sono e na alimentação. O coração dispara e o usuário corre seríssimo risco de um ataque cardíaco.

Na China, o ópio foi introduzido por comerciantes árabes na longínqua dinastia Tang, que durou entre 618 a 907. Mas por mil anos foi consumido via oral, como medicamento para aliviar a tensão e a dor, utilizado em quantidades limitadas.

O hábito de fumar ópio só foi introduzido no país no século 17, pelos holandeses. Foi um sucesso. 
Com o tempo sua importação foi expandida - inicialmente pelos portugueses, depois pelos franceses e finalmente pelos ingleses.

O consumo mostrou-se indispensável à saúde da economia europeia.

Os britânicos usavam os lucros da venda de ópio no Oriente para comprar artigos de luxo como porcelana, seda e chá, com alta demanda no Ocidente.

O comércio, no entanto, desagradava a China, incomodada com o crescimento da dependência do narcótico.

A primeira proibição de consumo de ópio no país é datada em 1729, mas teve pouco efeito prático.

A coisa degringolou de vez apenas mais de um século depois, em 1839, quando o governo chinês destruiu uma imensa quantidade de ópio, equivalente a um ano de consumo, nas mãos de mercadores britânicos.

Os ingleses reagiram com fúria, enviando ao Oriente navios abarrotados de soldados.

Era o início da Primeira Guerra do Ópio.

Os britânicos derrotaram os chineses três anos após o incidente, obrigando-os a assinar um tratado de abertura dos portos e de indenização pelo ópio destruído. O consumo do narcótico, no entanto, 
continuava proibido.

O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ingleses, em 1857 - dessa vez com apoio dos americanos e dos franceses.

Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por quase um século. O narcótico só voltou a ser proibido em 1949, após a tomada do poder pelos comunistas.

Mas a humilhação não restringiu-se ao consumo de ópio.

Em 1842, para encerrar o primeiro confronto, os chineses cederam aos britânicos, "para sempre", o controle de uma pequena ilha rochosa ao sul, escassamente habitada por pescadores, como um porto livre com direitos de comércio para o continente. Era a Ilha de Hong Kong.

Em 1860, com a derrota no segundo confronto, os chineses acabaram também cedendo a Península de Kowloon, ampliando os poderes dos britânicos na região.

Em 1898, por fim, para garantir o abastecimento da colônia, Londres assegurou ainda os Novos Territórios, uma região agrícola acima da ilha de Hong Kong e da Península de Kowloon, através de um terceiro tratado. Este último, um arrendamento com prazo de validade: 99 anos. Ou seja, com domínio assegurado até 1997.

Assim, Hong Kong, como todo o território é conhecido, passou a ter um desenvolvimento particular sob cuidado dos britânicos.

A região quase inabitada no século 19, alcançou o século 21 como uma das mais densamente povoadas do planeta. E em poucas décadas, se tornou também um dos territórios mais ricos do mundo.

Um cidadão médio de Hong Kong não é apenas cinco vezes mais rico que um cidadão médio da China continental - também é mais rico que um habitante médio do próprio Reino Unido.

Em setembro de 1982, quando Margaret Thatcher, a primeira-ministra inglesa, sentou-se para negociar uma renovação do arrendamento do território com Deng Xiaoping, o líder político chinês, os comunistas foram irredutíveis: não queriam apenas a devolução dos Novos Territórios, prevista no terceiro acordo, mas de toda a região.

Para os chineses, os tratados anteriores eram injustos.

Thatcher assumiria, anos mais tarde, que Deng ameaçou, sem rodeios, tomar Hong Kong à força caso suas solicitações não fossem atendidas - e que não havia absolutamente nada que os britânicos pudessem fazer para impedi-lo.

Assim, em dezembro de 1984, Londres e Pequim estabeleceram que Hong Kong voltaria ao domínio chinês após 156 anos de administração colonial britânica: à meia noite do dia 1º de julho de 1997.

Em comum acordo, ingleses e chineses aceitaram um processo de transição que transformaria Hong Kong numa Região Administrativa Especial.

Numa estrutura conhecida como "Um país, dois sistemas", originalmente proposto pelo próprio Deng Xiaoping, a China prometeu não alterar o sistema em vigor no território por 50 anos.

O que significa dizer que, com o novo tratado, Hong Kong continuaria a ser um porto livre e um centro financeiro internacional até 2047 - com autonomia interna, inclusive fiscal, e amplas liberdades individuais aos seus habitantes, exceto nas áreas de defesa e política externa.

Na última década, no entanto, esta autonomia vem sendo sistematicamente violada por Pequim, gerando uma série de protestos populares em Hong Kong, brutalmente confrontados pela polícia com sprays de pimenta, gás lacrimogêneo e canhões de água.

E é exatamente nesse cenário que alcançamos 2020.

Ao longo de abril e maio, enquanto o mundo prestava atenção na pandemia de coronavírus, Hong Kong foi flagrantemente perdendo sua condição de território independente.

Primeiro, Pequim foi atrás de seus maiores opositores.

Em abril, 15 dos seus principais ativistas pró-democracia foram presos.

Simultaneamente, o Gabinete de Ligação, o mais alto representante do governo chinês em Hong Kong, anunciou que não estava vinculado ao Artigo 22 da Lei Básica.

A Lei Básica de Hong Kong serve como o documento constitucional do território. Essa é a legislação que regula a região desde a queda do domínio britânico, em 1997.

O Artigo 22 da Lei Básica diz que “nenhum departamento do Governo Popular Central e nenhuma província, região autônoma ou município diretamente sob o governo central, pode interferir nos assuntos administrados internamente pela Região Administrativa Especial de Hong Kong”.

Na prática, Pequim admitiu não respeitar o acordo de "um país, dois sistemas", estabelecido até 2047.

Na última semana, o governo chinês assumiu que criará por decreto uma lei de segurança nacional em Hong Kong, contornando o processo legislativo autônomo da região para enfrentar diretamente a dissidência política contra o Partido Comunista.

Em 2003, as tentativas de aprovar uma legislação semelhante provocaram manifestações em massa, fazendo o esforço ser descartado.

Dessa vez, as regras de distanciamento social dificultam os protestos. Mas manifestações aconteceram neste domingo. Pelo menos 180 ativistas foram presos. Inúmeros acabaram hospitalizados.

Nesses últimos 23 anos, essa é a medida mais ousada de Pequim para tomar o controle total de Hong Kong. A tendência é que a legislação seja aprovada ainda nesta semana.

A medida tende a agravar as tensões nas relações da China com os Estados Unidos.

Trump disse há poucos dias que os Estados Unidos responderiam fortemente a qualquer tentativa das autoridades chinesas de impor uma repressão a Hong Kong.

Mike Pompeo, o secretário de Estado americano, disse que as ameaças chinesas podem fazer com que os Estados Unidos reavaliem o tratamento especial que o território recebe como região autônoma sob a lei americana.

Pat Toomey e Chris Van Hollen, dois membros do Senado americano, assumiram na última quinta-feira que apresentarão um projeto de lei capaz de permitir aos Estados Unidos sancionar autoridades e entidades chinesas que aplicarem novas leis de segurança nacional em Hong Kong.

Neste domingo, Robert O'Brien, conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, disse que o país instituirá sanções à China caso a legislação seja aprovada:

"A China depende de capital do resto do mundo para fazer com que sua economia cresça e amplie a classe média. Eles dependem de liquidez e dos mercados financeiros. Se eles perderem acesso a isso por meio de Hong Kong, será um estrago real para Xi Jinping e para o Partido Comunista. Eu espero que eles levem isso em conta, enquanto refletem sobre o próximo passo."

O mercado de ações em Hong Kong, um dos principais centros financeiros do mundo, desabou na última sexta-feira, depois que Pequim anunciou o plano.

Há poucos dias, o Senado americano aprovou um projeto de lei que ameaça proibir empresas chinesas de serem listadas nas bolsas americanas ou angariar fundos de investidores norte-americanos.

O projeto de lei exige que empresas de qualquer nacionalidade, interessadas em participar do mercado de ações nos Estados Unidos, certifiquem às autoridades que “não pertencem ou são controladas por um governo estrangeiro”. A medida atrapalha os planos de algumas das maiores empresas da China, umbilicalmente ligadas a Pequim.

O projeto foi aprovado por unanimidade por republicanos e democratas.

Joe Biden, candidato à presidência pelo partido Democrata, disse à CNBC na última sexta-feira que os Estados Unidos não deveriam se calar em relação a Hong Kong e, se ele fosse presidente, levaria o assunto às Nações Unidas.

“Governamos não apenas pelo exemplo de nosso poder, mas pelo poder de nosso exemplo... e não devemos permanecer calados. Deveríamos pedir ao resto do mundo que condene suas ações.”

Na sexta, o Washington Post publicou que os Estados Unidos cogitam realizar seu primeiro teste nuclear em 28 anos.

Três dias depois, o governo chinês disse que "usará medidas necessárias" caso os Estados Unidos interfiram em Hong Kong.

Hoje, terça-feira, graças ao crescimento das tensões com os americanos, Xi Jinping alertou a China para estar preparada para um combate militar.

A guerra fria do século 21 alcançou o seu verão.


Rodrigo da Silva.



A DOUTRINA BOLSONARISTA

28 de Maio de 2020, 19:19, por .

22 de maio de 2020. Por ordem de Celso de Mello, Ministro  do Supremo Tribunal Federal, partes do vídeo da reunião de governo realizada em 22 de abril foram divulgadas. Todos assistimos. Sérgio Moro afirmar que há no vídeo provas de que o Presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na Polícia Federal.

Quero aqui examinar o vídeo, buscando entender como os valores fundamentais do bolsonarismo atravessam as manifestações de Bolsonaro e de seus ministros. O vídeo é o documento mais completo que temos para tentar entender a doutrina bolsonarista.

Fica evidente que o bolsonarismo se considera um projeto político revolucionário. Não é cortina de fumaça. Não é simples retórica usada para esconder os interesses do capitalismo internacional. É genuíno. É sincero. Bolsonaro e seus seguidores estão mesmo convencidos de que estão promovendo uma revolução. O revolucionário é o tipo social mais perigoso que existe. Na ética revolucionária vale tudo para acelerar o processo histórico rumo à utopia. O revolucionário não tem limites.

Qual é a utopia bolsonarista?

Diferente das utopias modernas, a utopia bolsonarista não aponta para um futuro inédito, para o novo a ser construído. Trata-se de uma utopia reacionária, com o objetivo de reconstruir o mundo perfeito que já teria existido no passado. Na temporalidade bolsonarista, o passado é a matriz da utopia. O futuro é a regeneração. O presente é a decadência a ser superada pela ação revolucionária.

Seria equivocado dizer que a utopia bolsonarista é conservadora. Conservadores, hoje, são aqueles que tentam salvar as instituições democráticas da revolução bolsonarista.

Qual é o passado que serve como objeto de desejo para a utopia reacionária bolsonarista?

Não é a ditadura militar instituída no Brasil em 1964. E aqui temos aspecto muito importante para a compreensão do bolsonarismo. O deputado Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no parlamento elogiando a ditadura. O objeto da nostalgia do Deputado era a ditadura militar. A nostalgia do presidente Bolsonaro é outra. Em algum momento aconteceu o encontro do Deputado Bolsonaro com a crítica da modernidade desenvolvida por Olavo de Carvalho ao longo da década de 1990. Esse encontro, que ainda precisamos descobrir como aconteceu, quando aconteceu, é o berço do bolsonarismo como projeto revolucionário.

O presidente Jair Bolsonaro idealiza um mundo pré-moderno, anterior à invenção do Estado, onde os patriarcas pegam em armas, se organizam em milícias para proteger sua propriedade e sua família, para dominar sua propriedade e sua família. Esse é o núcleo duro do projeto bolsonarista, manifestado não apenas nas falas do Presidente na tal reunião, mas nas diversas tentativas do governo em flexibilizar as regras de controle do comércio de armas de fogo, quase sempre à revelia das forças armadas, que legalmente têm autoridade técnica sobre a matéria.

Na doutrina bolsonarista, o cidadão de bem, homem, proprietário, deve ser livre para matar, se entender que é necessário para defender seus interesses. O regime de força que o bolsonarismo tenta implantar no Brasil não tem o objetivo de reeditar a ditadura militar. O objetivo é transformar o país num continente feudal, onde cada lote de terra é guardado pelo patriarca armado, senhor da vida e da morte de todos aqueles que vivem sob sua tutela/proteção. Essa é a liberdade que Weintraub e Bolsonaro querem defender, dizem estar dispostos a tudo para defender. 

Na utopia bolsonarista, os filhos devem ser criados à imagem e semelhança dos pais, sem nenhuma interferência externa à casa. A educação pública seria, então,  ato de tirania,  a tentativa do Estado em corromper os filhos do patriarca. Por isso, tudo que Weintraub fez desde que assumiu o Ministério da Educação foi tentar desmoralizar a educação pública.Desmoralizar os professores, as universidades, o ENEM. Não é incompetência administrativa. É projeto. É ideologia. É a doutrina bolsonarista.

E Paulo Guedes? O chicago boy tão incensado pela imprensa liberal, definido como a reserva técnica dentro do governo do capitão aloprado. Lembro de Eliana Catanhede dizendo que Bolsonaro havia feito um “golaço” ao convidar Guedes para comandar a fazenda. Ah, essa “direita democrática” brasileira. Ou são cínicos ou são burros. Talvez as duas coisas.

Guedes é tão militante como Weintraub. Sua adesão ao bolsonarismo também é ideológica. A utopia reacionária bolsonarista cai como uma luva no neoliberalismo religioso de Paulo Guedes. “Nunca briguei com Guedes”, disse Bolsonaro. Por que brigaria? Eles foram feitos um para o outro.

Guedes não é um infiltrado do mercado que tenta disciplinar Bolsonaro. Guedes não é a concessão feita por Bolsonaro para agradar o mercado e se sustentar no governo. Guedes é  escolha ideológica, é prova de que o capitalismo especulativo não tem nenhum compromisso com a civilização. 

“Tem que privatizar a porra toda!”, disse Guedes. Somente na utopia bolsonarista, o fanatismo de Guedes é viável. Somente em um mundo dominado pela casa, o Estado pode ser mínimo, quase inexistente, como professa a religião de Paulo Guedes. O Estado é mínimo porque a casa é grande. Definitivamente, Paulo Guedes é militante bolsonarista. 

O bolsonarismo também evoca certo conceito de democracia e de representação política, mas numa chave muito diferente daquela que caracteriza o experimento democrático liberal-burguês. Na democracia liberal, o Estado é dividido em três poderes, que estabelecem entre si relação de controle recíproco, naquilo que costuma ser chamado de “sistema de freios e contrapesos”. Na democracia liberal, a participação política do cidadão é indireta. Periodicamente, o sujeito vai às urnas escolher seus representantes, para quem delega sua soberania. 

O bolsonarismo altera o conceito de democracia e redimensiona a ideia de representação política, se aproximando muito da lógica fascista. Para o bolsonarismo, toda e qualquer mediação é corrupta em si. Nesse sentido, legislativo e judiciário nada mais fariam do que se locupletar do dinheiro público e criar dificuldades para o poder executivo, único legítimo, o único verdadeiramente capaz de representar o cidadão.

O bolsonarismo não tolera negociar com os outros poderes, não aceita nenhum tipo de interferência. A representação política bolsonarista se dá pela projeção direta, sem mediação, de soberania no chefe, o único considerado verdadeiramente honesto. Existiria entre o chefe e o cidadão um vínculo afetivo, de confiança, de cumplicidade. O chefe representaria o cidadão porque também é homem honrado, pai de família em luta contra a corrupção sistêmica. O fascista é sempre um homem comum.

A representação liberal é pragmática, é movida pelo interesse do cidadão em delegar sua responsabilidade cívica a outro, garantindo assim o ócio necessário para se dedicar a seus assuntos privados. A democracia liberal é desmobilizadora. Já a representação fascista é afetiva, emocional, depende de constante agitação. O fascismo é mobilizador. 

A democracia bolsonarista significa uma sociedade organizada em clãs, cada qual protegido por um patriarca armado, homem de bem, representado diretamente pelo chefe maior, entendido como um deles. 

O bolsonarismo opera com conceitos que são constitutivos da tradição política ocidental, como liberdade, democracia e representação política. Conceitos que são elásticos o suficiente para permitirem a leitura fascista. O fascismo não é fruto estranho no terreno da tradição política ocidental. É possibilidade política aberta por essa tradição. De alguma forma, o fascismo é parte daquilo que somos, que todos nós somos. Por isso, ora ou outra o ovo da serpente dá cria. Por isso, é necessário estar sempre vigilante. Quando menos esperamos, o fascismo brota do chão, sem aviso prévio. Simplesmente chega, de mansinho, enquanto tudo estava normal, enquanto as instituições “estão funcionando”. Funcionam até o exato momento em que não funcionam mais,

Não sei se o vídeo da fatídica reunião comprova as acusações de Sérgio Moro. O processo legal, que Moro nunca respeitou quando era juiz, dirá. Fato mesmo é que o vídeo é o tratado de definição da doutrina bosonarista. É o texto que Olavo de Carvalho não escreveu.

Rodrigo Pérez Oliveira



PREPARE-SE PARA A GUERRA

28 de Maio de 2020, 18:59, por .

Texto Vladimir Safatle.

“Os últimos dias mostraram com precisão a tese de Freud que o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança. Ou alguém esperava ver, em meio à pandemia pessoas fazendo buzinaço em frente ao hospital?

Em 1939, pouco antes de Hitler atacar a Polônia e iniciar a Segunda Guerra, Freud lança seu último livro, “Moisés e a religião monoteísta”.

Neste livro que trata da constituição de identidades coletivas através de identificações a lideranças, há uma ideia surpreendente, sintetizada em uma pequena frase: “Moisés criou o povo judeu”. Ou seja, não se tratava de afirmar que a liderança era a expressão dos traços de seu povo.

Na verdade, o quadro estava de cabeça para baixo. Aquele que ocupava o lugar do poder e prometia uma grande transformação acabava por constituir o povo, por definir os traços prevalentes de sua identidade coletiva.

Ou seja, havia uma força produtiva do poder, não apenas uma força coercitiva. Da representação do poder, vinha uma força de identificação que moldava paulatinamente os sujeitos a ela submetidos, que os transformava em seus afetos, em sua estrutura psíquica, em suas ações.

O poder molda os que a ele se assujeitam.

Freud não conheceu o Brasil, nem nunca ouvi falar de Jair Bolsonaro. Mas é certo que os últimos dias mostraram com precisão sua tese de que o poder molda sujeitos, fazendo-os a sua imagem e semelhança.

Todos estão a perceber essa mutação na qual expressões de desprezo, indiferença e violência antes inimagináveis de serem feitas a céu aberto e na frente de todos se tornam manifestações cotidianas, em uma espiral em direção ao abismo que parece não ter fim.

Ou alguém realmente esperava ver, em meio a uma pandemia, pessoas a manifestar na Avenida Paulista dançando com um caixão, fazendo buzinaço em frente a hospital, zombando abertamente da dor e do desespero de milhares de pessoas infectadas e lutando pela vida em situações hospitalares precárias?

Como se fosse o caso de expressar, da forma a mais aberta e brutal, a indiferença em relação aos 2500 corpos mortos até agora, ao menos se confiarmos nos números subnotificados. Como se fosse o caso de repetir os “deslizes”, as “derrapadas”, ou melhor, os traços de caráter de quem ocupa o poder.

Alguns podem dizer que isto sempre esteve aí, na indiferença das classes mais altas ao destino e as chacinas perpetradas contra as classes vulneráveis. 

Mas o pior erro é não perceber as placas tectônicas se movendo por estar com os olhos submersos na lógica repetitiva do “sempre foi assim”.

Não, há algo novo a acontecer. Pois não se trata apenas da conhecida máquina necropolítica do estado brasileiro. Trata-se da explosão de rituais públicos de auto-sacrifício e de violência.

Trata-se de uma dinâmica “suicidária”. Erra quem acredita que essas hordas envoltas na bandeira nacional “não sabem do perigo que correm”, são “burras”, como se fosse simplesmente o caso de procurar explicar claramente o que é uma pandemia para todos voltarem para casa.

Diante do fascismo, Adorno e Horkheimer disseram um dia que nada mais estúpido do que tentar ser inteligente. Nossa pretensa supremacia intelectual ainda irá nos matar.

Ela nos faz não ver como, no fundo, há uma parte da população brasileira que deseja isto e se dispôs a jogar roleta russa com todos e com elas mesmas. É este desejo que deve ser compreendido.

Pois esta será sua forma de se sacrificar por um ideal, mesmo que este ideal não prometa nada mais do que o próprio sacrifício, nada além de um movimento permanente em direção à catástrofe.

Neste sentido, estamos a observar uma mutação impressionante. Mesmo sendo o pior governo do globo terrestre diante da pandemia (comparado apenas a Bielorrusia, ao Turcomenistão, e ao renegado que governa a Nicarágua), o apoio a Bolsonaro não cai.

Ele muda paulatinamente. Setores da classe alta vão abandonando-o enquanto ele compensa com adesões nas classes populares, repetindo um movimento que vimos inicialmente com o lulismo.

Dificilmente, este número mudará. Ele nem subirá, nem cairá. Mas a qualidade deste apoio mudará. Ele deixará de ser simples apoio para ser identificação profunda e aguerrida.

Ao final, teremos um país com 30% de camisas negras dispostos a tudo, pois acreditam estar em um processo revolucionário de ressureição nacional. Este processo não tem mais retorno.

Não será a primeira vez na história que uma dinâmica de afetos e crenças desta natureza ganhou corpo. Esta implosão aberta de qualquer princípio elementar de solidariedade, esse desprezo com os que morrem, esse culto do próprio suicídio como prova de “coragem”, essa violência cada vez mais autorizada até a formação aberta de milícias populares, esta crença em uma revolução nacional redentora, isto tudo tem nome.

Costuma responder pura e simplesmente por “fascismo”.

Movimentos desta natureza sempre se aproveitam da fraqueza de seus adversários. Enquanto Bolsonaro moldava uma parte da sociedade a sua imagem e semelhança, havia sempre os especialistas em questões palacianas florentinas capazes de identificar as intrigas que iriam “paralisa-lo”, os erros que indicariam que “acabou para você”.

Até pouco tempo, Bolsonaro foi descrito como uma “rainha da Inglaterra”. Isto até ele mandar embora seu ministro da Saúde sem que nenhum cataclismo anunciado realmente ocorresse. Não, não há nada que irá para-lo, nenhum recuo ocorrerá.

Um projeto dessa natureza só é parado de forma brutal. Mas esta brutalidade necessária não está na consciência dos atores políticos atuais.

Poderíamos ter começado mobilizações contínuas pelo impeachment há um mês. Mais uma vez, analistas finos diziam que não era a hora, que isto só fortaleceria o discurso persecutório do Governo.

Como se o Governo precisasse de nós para alimentar seu próprio discurso persecutório e mobilizar suas hostes. Não, agora eles denunciam um “plano” para derrubar Bolsonaro, sendo que a oposição sequer conseguiu colocar um pedido de impeachment em marcha, sequer permitiu a maioria de gritar por seu nome.

No máximo, suas lideranças endossaram um pedido de “renúncia”. Faltou pedir “por favor” a Bolsonaro para que ele caísse em si e se afastasse de bom grado. Como dizia Maquiavel, a audácia é qualidade fundamental diante da fortuna.

Mas o único ator que demonstra audácia a altura da situação é o próprio Governo. Em breve teremos uma tentativa de golpe vendida como “contra-golpe preventivo”, sem que a oposição tenha feito nada mais do que abaixos-assinados, petições e cartas públicas.

A última a acreditar em uma democracia parlamentar que simplesmente não existe mais.
Acrescente ao quadro, o cálculo macabro que o Governo conseguiu impor a parcelas da população.
Para elas, trata-se de escolher entre a bolsa ou a vida, entre a morte econômica certa e a morte física provável.

Nesse cálculo, o certo acaba por vencer o provável, ainda mais diante de setores da população submetidos ao extermínio, ao desaparecimento, a chacina.

Este é o grão de racionalidade da situação apresentada por Bolsonaro. Ela só se sustenta porque a terceira opção está interditada, a saber, nem a bolsa, nem a vida, mas os dois.

Diante disto, que a sociedade constitua redes de auto-defesa contra o pior que está por vir. Há duas semanas, pessoas que batiam panela em suas casas contra o governo foram vítimas de disparos de balas de espingarda de chumbo.

Em manifestações pró-governo, cidadãos e cidadãs oposicionistas foram violentamente agredidos.

Quantas semanas ainda faltam para começar os linchamentos e as balas reais?”