Como o Flamengo se tornou instrumento da extrema direita
22 de Maio de 2020, 9:17Witzel com Rodolfo Landim (à esq.), Bolsonaro e Rodrigo Amorim (à dir.): clube se aproxima de políticos ultraconservadores. |
Afagados por dirigentes, Bolsonaro, Witzel e correligionários surfam na euforia em torno da boa fase do clube mais popular do país. Diretoria se diz apolítica, mas negou homenagem a vítima da ditadura
Embora seja comum chefes de Estado trocarem gentilezas em eventos diplomáticos, a cena chamou atenção de quem acompanhava, no fim de outubro, o encontro entre os presidentes de Brasil e China. No Grande Palácio do Povo, em Pequim, Jair Bolsonaro entregou um agasalho do Flamengo a Xi Jinping, explicando se tratar do “melhor time do Brasil no momento”. Torcedor do Palmeiras, principal oponente do rubro-negro carioca pelo título do Campeonato Brasileiro, Bolsonaro ainda disse ao anfitrião que “1,3 bilhão de chineses também serão Flamengo” na final da Copa Libertadores, contra o River Plate. Do outro lado do planeta, a breve cerimônia resumiu como o clube de maior torcida do país se tornou um instrumento político para a diplomacia do presidente.
Figura cativa em estádios, Bolsonaro tem utilizado o futebol como trampolim de popularidade desde que se elegeu – uma carta já empregada por muitos que o antecederam no cargo, do clássico ufanismo insuflado pela ditadura militar na campanha da Copa de 1970 ao lobby presidencial em prol da construção da Arena Corinthians durante o Governo Lula, às vésperas do último Mundial sediado pelo Brasil. Elevando a instrumentalização à máxima potência, incluindo o expediente de se convidar para grandes jogos como o clássico entre Santos e São Paulo, na Vila Belmiro, o presidente ultradireitista enxergou no Flamengo, que não vivia uma fase tão empolgante desde os tempos de Zico, nos anos 80, a plataforma de maior alcance para conquistar torcedores.
Em abril, na mesma semana em que o time sagrou-se campeão carioca, o mandatário recepcionou no Planalto a menina Yasmin Alves, que, supostamente, teria se recusado a cumprimentá-lo em visita a sua escola, e a presenteou com uma camisa do Flamengo. Em junho, Bolsonaro apareceu nas tribunas do Mané Garrincha ao lado do ministro da Justiça, Sergio Moro, para acompanhar o jogo dos rubro-negros contra o CSA. Ambos posaram para fotos vestindo camisas do time. A exibição no estádio aconteceu três dias depois do The Intercept revelar mensagens vazadas de Moro, que colocaram em xeque a imparcialidade do ex-juiz da Lava Jato. Na semana passada, o presidente voltou a agradar flamenguistas durante uma solenidade em Campina Grande, na Paraíba, ao cravar que Gabigol marcará o gol do título da Libertadores.
Concorrentes pelo protagonismo na direita recorrem a estratégia similar. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC), que venceu a eleição colado na imagem de Bolsonaro, mas agora se apresenta como desafeto do presidente, é outro chefe de governo a surfar na onda do Flamengo. Um dos primeiros compromissos oficiais como governador eleito foi receber o então candidato a presidente rubro-negro, Rodolfo Landim, para discutir a concessão do Maracanã. Em janeiro, Witzel esteve no estádio para assistir a um jogo do time pelo Campeonato Carioca. Apesar de torcer para o Corinthians, ele entrou no gramado com uma camisa do Flamengo, pediu autógrafos aos atletas e tirou selfies com torcedores. A partir dali, se dedicou a estreitar laços com o clube.
No início de abril, o governo estadual concedeu a Flamengo e Fluminense a gestão provisória do Maracanã, sob protestos do Vasco, que alegou falta de transparência no processo de escolha – nesta segunda, o governador anunciou parceria com o clube cruzmaltino para obras de melhorias no entorno de São Januário. Witzel tem comparecido ocasionalmente aos camarotes do Maracanã em partidas do time rubro-negro, já se reuniu com integrantes de torcidas organizadas do clube e chegou até a se dispor a convencer o português Jorge Jesus a permanecer no Brasil após rumores de que o treinador estaria preocupado com a violência no Rio. “Ele terá paz para fazer o melhor pelo Flamengo”, garantiu o governador. O elo entre Witzel e o presidente Landim reside dentro do clube, chancelado por um cargo ofic
Bolsonaro entrega agasalho do Flamengo ao presidente chinês.AFP |
Aleksander Santos exerce o papel de relações públicas do Flamengo na política. Membro da executiva estadual do Solidariedade, ele já foi filiado ao MDB e PSC e chefiou secretarias em cidades como Itaboraí e Maricá. Inicialmente como colaborador informal, cuidou da intermediação de contatos de Landim com autoridades antes mesmo de ele assumir a presidência do clube. Amigo do vice-governador Cláudio Castro, a quem conheceu ao longo de sua militância no PSC, Santos estabeleceu ligação direta com o Palácio Guanabara. Castro esteve na posse de Landim, na Gávea, onde recebeu uma camisa personalizada e, assim como em outras duas solenidades, representou o governador.
Mas foi o empenho do conselheiro em obter as licenças com órgãos municipais e estaduais para desinterditar o Ninho do Urubu, após o incêndio que matou 10 garotos da base no centro de treinamento em fevereiro, que convenceu a diretoria a nomeá-lo, em maio, à função de diretor de relações governamentais. Antes da oficialização no cargo, Santos já havia atrelado a imagem do clube a outras referências da direita aliada ao bolsonarismo, como o ex-senador Magno Malta (PL-ES) e o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ), que receberam uniformes do time. O agrado a Amorim, entretanto, provocou divergências internas no clube.
Em seu gabinete na Alerj, ele ostenta uma camisa do Flamengo emoldurada entre a foto de Jair Bolsonaro com a faixa presidencial e um pedaço da placa com o nome de Marielle Franco quebrada pelo então candidato em um comício ao lado de Witzel. No início do ano, o deputado desfilou no gramado do Maracanã comemorando a conquista da Taça Rio entre jogadores rubro-negros. Em abril, agradeceu ao clube que o presenteou com uma camisa 17, número de seu partido. Porém, na mesma semana, a diretoria do Flamengo havia emitido uma nota ressaltando que a instituição “não se posiciona sobre assuntos políticos”. O comunicado rechaçava envolvimento do clube em uma homenagem de torcedores ao ex-remador rubro-negro Stuart Angel, torturado e morto em 1971 pela ditadura militar, regime exaltado por adeptos da corrente bolsonarista.
Diante do mimo entregue a Rodrigo Amorim, conselheiros e sócios questionaram a cúpula sobre a conotação política do ato, que dirigentes qualificaram como “uma gentileza”, de caráter extraoficial. O deputado segue pegando carona na boa fase do time. Em outubro, por exemplo, publicou duas fotos com trajes rubro-negros nas redes sociais. Uma delas por ocasião do Dia de Valorização da Família e a outra, em que posa com o vice-governador Cláudio Castro, no Dia do Flamenguista, celebrado em 28 de outubro. Apesar da polêmica, Alexsander Santos ganhou ainda mais prestígio com os cartolas. Desde que foi promovido ao cargo remunerado, passou a direcionar o foco à aproximação entre clube e Governo federal. O dirigente afirma que seu trabalho é “apartidário”, voltado somente ao “relacionamento institucional com os poderes públicos”.
Aleksander Santos com Witzel e Rodrigo Amorim, que ganhou uma camisa com o número do PSL.ARQUIVO PESSOAL |
Santos agilizou a ponte com o gabinete de Bolsonaro para a entrega de camisas autografadas a membros do Governo no jogo contra o CSA, em Brasília. Ele aparece, inclusive, em uma foto replicada pelos perfis oficiais do clube nas redes sociais ao lado do presidente, o ministro Sergio Moro, o deputado federal Helio Lopes (PSL-RJ) e o vice de futebol Marcos Braz. Em sua segunda passagem pelo alto comando do clube, Braz foi secretário de Esporte e Lazer na gestão de Eduardo Paes e se candidatou a vereador pelo PSB, em 2012 – não foi eleito. Próximo do senador Romário (Podemos-RJ), ele fez questão de registrar no início do ano, em sua conta no Instagram, um encontro com o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB-RJ), que é torcedor do Flamengo.
Já Helio Lopes, um dos parlamentares mais íntimos da família Bolsonaro, também se declara flamenguista. Ele é um dos oito deputados – cinco deles eleitos pelo PSL – que protocolaram requerimento para celebrar os 124 anos do clube em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, marcada para este 19 de novembro, com presença confirmada do presidente Rodolfo Landim. O requerimento ainda é assinado por Dr. Luizinho (Progressistas-RJ), conselheiro do Flamengo e apoiador de Witzel, que, após um pênalti não marcado a favor do clube contra o Athletico, convocou, em conjunto com Lopes, uma audiência pública para questionar a CBF sobre o uso do árbitro de vídeo (VAR). “Não conseguem parar o Flamengo no campo e, agora, querem parar com o VAR”, diz o deputado. O debate será realizado logo depois do evento em comemoração ao aniversário rubro-negro.
Entre o jogo político e o alinhamento ideológico
Formado por torcedores e associados, o movimento Flamengo da Gente tem indagado publicamente a diretoria sobre o relacionamento do clube com autoridades. Quando perfis oficiais postaram a foto de Moro e Bolsonaro no estádio, em meio à repercussão da Vaza Jato, o grupo criticou um suposto proselitismo por parte de dirigentes, reconhecendo a “importância de manter relações institucionais com políticos e tomadores de decisão. Mas acreditamos que há uma diferença entre se relacionar e promover a agenda alheia, ainda mais em tempos de crise”. Na época, o comando rubro-negro reiterou sua orientação “apolítica”, por entender como natural a proximidade com um ministro e o presidente da República.
O Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o Ministro da Justiça, Sergio Moro, acompanham o jogo do Flamengo ao lado de dirigentes rubro-negros no Mané Garrincha. #CSAxFLA pic.twitter.com/UKD8E2dFwE— Flamengo (@Flamengo) June 13, 2019
Para afastar a tese de partidarismo em favor de lideranças ultradireitistas, o clube se apoia no fato de já ter se relacionado com parlamentares da oposição como parte da estratégia de alianças para contemplar seus interesses no setor público. Os deputados petistas Rosângela Zeidan e André Ceciliano, presidente da Alerj, também marcaram presença na posse de Landim, ambos convidados por Alexsander Santos. Torcedores rubro-negros, eles se uniram a parlamentares da extrema direita, como Rodrigo Amorim, vestidos com uniforme do clube, para aprovar um projeto que prevê a volta dos setores populares, a famosa “Geral”, ao Maracanã. O Flamengo se manifestou favorável à medida, que carece de estudos de viabilidade financeira antes de ser efetivada. Ceciliano ainda se juntou a um adversário político do PT, o deputado Alexandre Knoploch (PSL), assíduo frequentador dos jogos do Flamengo, para propor a entrega da Medalha Tiradentes ao técnico Jorge Jesus.
No entanto, por ser a força governista tanto no executivo estadual quanto federal, o espectro da direita conservadora é o que mais tem investido em capitalizar com o bom momento do clube flamenguista. Dissidente do bolsonarismo, o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP) decorou seu gabinete em Brasília com temática rubro-negra e imagens cedidas pelo fotógrafo oficial do time. Embora já tenha integrado a equipe de polo aquático e até uma torcida organizada do Flamengo, o parlamentar virou motivo de chacota de torcedores nas redes sociais depois de confundir a camisa do Sport com a do Flamengo, quando o atacante Diego Souza entregou materiais do time de Recife a companheiros de seleção. Um dos mentores do requerimento em homenagem ao aniversário do clube carioca, Frota foi nomeado embaixador rubro-negro no Estado de São Paulo, em 2010. Ele ainda não havia entrado para a política. A ideia partiu de Aleksander Santos, que, na época, era diretor de marketing na gestão de Patrícia Amorim.
Atualmente, o departamento de relações governamentais do clube vislumbra uma diplomacia que percorra diversos campos ideológicos, mas sem melindrar o bolsonarismo, apoio considerado fundamental pelos dirigentes, sobretudo no Rio de Janeiro. Pelo lado do Governo, Bolsonaro se mostra satisfeito com os sinais de deferência que partem do Flamengo. Em outubro, convidou Rodolfo Landim para um almoço no Planalto e, sob a mediação de Santos, foi novamente presenteado com uma camisa do time. No período em que integrava a diretoria da Petrobras, o mandatário rubro-negro desenvolveu jogo de cintura para lidar com os trâmites políticos da estatal, a ponto de se tornar um dos executivos mais próximos da ex-presidenta petista e ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff. Como cartola, Landim mantém o pragmatismo aplicado aos negócios para cortejar a bola da vez no pod
fonte El País BrSIL
Afinal, por que os comunistas se tratam como “camaradas”?
22 de Maio de 2020, 8:51Com a 2ª Revolução Francesa e as demais revoluções europeias, em 1848, “camarada” se tornou parte de um discurso afetuoso entre pessoas que compartilham as mesmas ideias socialistas e, mais importante ainda, lutavam por elas
A Revolução de 1917, liderada por Vladimir Lênin, derrubou não apenas a dinastia imperial dos Romanov, que dominava a Rússia havia mais de 300 anos. Com os bolcheviques no poder, caíram também as formas de tratamento de respeito usadas sob o regime czarista.
Até então, homens e mulheres pertencentes à nobreza, funcionários públicos e oficiais militares, comerciantes respeitáveis e padres – cada um deles tinha pronomes próprios de tratamento, similares ao “senhor” e ao “vosso” do português. Já as pessoas simples do povo, fossem cidadãos urbanos ou camponeses, não tinham uma forma de tratamento determinada – o que servia para aprofundar ainda mais as desigualdades da sociedade.
Em certa medida, o que viria a ocorrer na Rússia – a ideia de adaptar os pronomes de tratamento de acordo com a nova configuração social e política – já acontecera na França mais de um século antes. Após a nobreza ser abolida com a Revolução de 1789, os franceses inventaram uma nova forma de tratamento para pessoas livres: “cidadão”. Até mesmo o antigo rei da França passou a ser chamado de “Cidadão Luís Capeto”.
No século 19, com o advento do socialismo científico na Alemanha – terra de Karl Marx e Friedrich Engels –, os primeiros socialistas adotaram a palavra “kamrade” como sua forma de tratamento. A razão para a escolha não é clara. Em latim, o termo “camarada” significa, literalmente, “companheiro de cômodo”. Segundo alguns estudos de linguística, a palavra era usada para designar, provavelmente, pessoas que compartilhavam um mesmo alojamento durante os estudos.
Com a 2ª Revolução Francesa e as demais revoluções europeias, em 1848, “camarada” se tornou parte de um discurso afetuoso entre pessoas que compartilham as mesmas ideias socialistas e, mais importante ainda, lutavam por elas. Mas os russos não diziam “camarada” – e, sim, sua própria versão: “továrisch”.
Irmãos no comércio
Em russo, “továrisch” significava, inicialmente, não “companheiro” – mas “irmão no comércio”. A palavra vem da raiz “továr”, que significa “mercadoria”. Továrisch era um parceiro em atividades comerciais – aquele com quem uma pessoa comercializava. Assim, a palavra tinha uma conotação óbvia voltada aos negócios.
Entre os cossacos, um membro legítimo da comunidade era chamado de továrisch. O termo também foi usado no serviço público: de 1802 a 1917, existiu o cargo de “továrisch do ministro” – tecnicamente, ele era o vice-ministro. Depois da Revolução Russa, os bolcheviques adotaram rapidamente a palavra továrisch como modo universal de tratamento, usada para seus correligionários e os comunistas em geral.
Assim como o rei Luís 16 (chamado de “Cidadão Luís Capeto” depois da Revolução Francesa), o czar Nikolai Romanov passou a ser tratado por “cidadão” – e não por “továrisch” –, porque ele não poderia nunca ser um deles. Por sinal, dizer “você não é um továrisch para nós” era um insulto grave entre os bolcheviques.
Továrisch ou cidadão?
Em procedimentos oficiais, como julgamentos ou em corte marcial (que, aliás, era chamada de “julgamento továrisch” em russo), passou-se a usar o termo “grajdanín” (cidadão). Ora, um cidadão não é necessariamente um továrisch.
A forma feminina, porém, não se aplicava: “tovarka” foi utilizada por um breve período e logo ficou obsoleta. As mulheres eram tratadas da mesma maneira que os homens. No entanto, seus sobrenomes ainda tinham terminações femininas, por exemplo, “továrisch Ivânova” (a forma masculina seria “továrisch Ivánov”).
Entre os militares soviéticos (e, mais tarde, russos, ucranianos e bielorrussos), a palavra “tovarisch” se tornou a principal forma de tratamento. Os superiores se dirigiam aos subordinados usando sua posição e sobrenome, ou továrisch e sua posição: “Capitão Petróv” ou “tovarisch Capitão”. Os subordinados se dirigiam aos superiores usando apenas továrisch e sua posição: “tovarisch Primeiro-Tenente”, “tovarisch Coronel”.
Na tradição soviética, os líderes comunistas sempre foram chamados por “továrisch”: továrisch Stálin, továrisch Brêjnev, etc. Com o fim da União Soviética, os socialistas deixaram o poder, e o Partido Comunista da Federação Russa sucedeu o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Mas a forma de tratamento erguida pelos revolucionários bolcheviques se consolidou como uma das longevas tradições do campo comunista mundo afora.
do Portal Vermelho Com informações do Russia Beyond